Psicomotricidade
A Psicomotricidade tem como objeto de
estudo o indivíduo humano e suas relações com o corpo, sendo um encontro
de múltiplas idéias, advindas das mais variadas ciências. As suas
origens, vertentes e concepções trilham caminhos que nos levam à
filosofia, biologia, psicanálise, entre outras áreas.
Conforme encontramos em Negrine (1995),
três grandes vertentes para esta prática são descritas na literatura: a
educação, a reeducação e a terapia. Para Aucouturrier citado por Negrine
(1995), a psicomotricidade tem sua função até os sete ou oito
anos.Partindo desta idade, deve-se mudar o tipo de atividade, através de
vertentes variadas ou formas de expressão corporal.
Para Arnaiz (2003), a prática psicomotora
deve ser entendida como um processo de ajuda que acompanha a criança em
seu próprio percurso maturativo, que vai desde a expressividade motora e
do movimento até o acesso a capacidade de decentração (p.13). Ainda
acrescentamos à importância da globalidade referida pela autora, onde
salienta a afetividade, a motricidade e o conhecimento como aspectos que
irão evoluindo da globalidade a diferenciação, da dependência a
autonomia, da impulsividade a reflexão (GARCIA OLALLA APUD ARNAIZ,
2003).
Método de Intervenção: A Proposta
A sessão de Psicomotricidade relacional tem
uma hora de duração está organizada em três momentos: ritual de
entrada, sessão propriamente dita e ritual de saída. No primeiro
momento, as crianças sentam numa rodinha e são feitas as combinações do
que pode ou não pode fazer (exemplo: pode brincar do que quiserem, não
pode machucar o colega). Na sessão propriamente dita, potencializa-se
jogos a partir dos materiais que são oferecidos. Para encerrar, no
ritual de saída, a criança é incentivada a verbalizar ou demonstrar (no
caso de autista não verbal) o que realizou na sessão.
O terapeuta corporal, para intervir, deve
estar preparado, não apenas para propor, mas para perceber todas as
modulações tônicas do outro, para atender sua demanda, para ser um
companheiro que está ali, para ajudá-lo a superar as dificuldades com as
quais se depara. Por exemplo, ao tentar realizar algo que requer
destreza, o que ainda não possui.
Na ação terapêutica, o papel do
profissional é de ajuda e de provocação. De ajuda ao estarmos
disponíveis para estender a mão, em várias situações, dizendo: “vem, eu
te ajudo”; “tu podes”; “agarra minha mão, que vais conseguir”.
Espaço Físico
A terapia psicomotora relacional para
crianças portadoras de Autismo desenvolve-se no ginásio de Universidade
Luterana do Brasil, campi Canoas. Também participam do grupo, crianças
com outras Síndromes e outras, que não apresentam dificuldades no
desenvolvimento.
Materiais
Materiais como: bolas de “bubet”,
almofadas, colchonetes, aros, cordas, colchões, telas (tecidos para
provocar arrastes), sacos e espelho estiveram presentes na maioria das
sessões. Eventualmente, as crianças do projeto descobriam outros
materiais que havia numa sala contígua, como: tinta e latas com cordão.
Mas quando havia a descoberta era permitido que utilizassem aquele
material, uma vez que eles proporcionavam significativas experiências
para algumas crianças do programa.
A utilização dos recursos materiais que
fomos introduzindo, ou aqueles utilizados de improviso, era incentivada,
através das provocações dos facilitadores,
ou das crianças que sinalizam, de alguma maneira, seus interesses. A
decisão era tomada em conjunto: observadores e demais facilitadores. Há
outros materiais que também vamos inserindo no trabalho, como: cordas,
aros coloridos, tecidos de tamanho grande, bancos de madeira, espaldar,
caixa de disfarce (roupas de adultos, fantasias, máscaras), caixa de
brinquedos (com materiais figurativos, em função das limitações destas
crianças, para simbolizar).
Os materiais para representação, como:
papéis, lápis colorido, giz de cera, argila, também faziam parte dos
recursos, colocados à disposição dos participantes. Costumava-se
estimular o uso desse material, no final da sessão, para provocar
realizações de trabalhos representativos.
Os recursos materiais são oferecidos em
cada encontro, respeitada a atividade espontânea da criança. Lapierre
descreve o uso destes materiais com reserva, evitando a caracterização
destes recursos como receita, na aplicação de um programa de exercícios
(Lapierre et al., 1987). Concordamos com esta afirmativa, salientando
que os materiais são importantes instrumentos na construção da terapia
psicomotora, o que nos motivou a pesquisar suas diferentes funções para
diferentes crianças autistas.
PARADIGMA DO ESTUDO E METODOLOGIA
A definição metodológica a ser adotada, ao
desenharmos um projeto de investigação, é um dos aspectos que merece
muita atenção e cuidado. Esta tarefa pressupõe que se busque uma
estreita e adequada relação entre a escolha do paradigma, e o que se
pretende estudar.
Entendemos que a prática terapêutica no
âmbito da Psicomotricidade Relacional, está orientada para questões que
necessitam observação, experimentação e descrição dos comportamentos que
dizem respeito às crianças portadoras de necessidades educativas
especiais.
Nesta perspectiva, para investigar a
criança autista no espaço terapêutico corporal, com ênfase na utilização
dos materiais, desenhamos a pesquisa centrada no modelo interpretativo
de corte qualitativo.
PARTICIPANTES DO ESTUDO
Os participantes alvos de nossa
investigação são crianças com Síndrome de Autismo de Kanner. Foram
selecionadas, para participar da pesquisa, crianças com diagnóstico de
“Autismo” de graus leve a moderado e severo. Embora
tenhamos mais casos para serem apresentados, optamos, nesse momento, por
dois relatos, em razão da ampla quantidade de informações e do formato
desta apresentação.
NASCIMENTO
|
GÊNERO
|
INÍCIO/ATENDIMENTO
|
|
Rohe
|
21/10/89
|
Masculino
|
25/03/98
|
Theo
|
06/11/94
|
Masculino
|
13/09/99
|
DESCRIÇÃO, ANÁLISE E DISCUSSÃO DAS INFORMAÇÕES.
Com o objetivo de descrever, analisar e
discutir o presente estudo, analisaremos aspectos que ofereceram uma
melhor compreensão de cada caso, através dos Materiais disponibilizados,
como mediadores da evolução de processos mentais.
O destaque que damos aos materiais
sustenta-se num dos temas que se constitui o núcleo da estrutura teórica
de Vygotski, ou seja, a crença no método genético evolutivo (1), a tese
de que os processos psicológicos superiores têm sua origem nos
processos sociais (2) e a tese de que os processos mentais somente podem
ser entendidos mediante a compreensão dos instrumentos e signos que
atuam como mediadores (3).
Os materiais disponibilizados devem ser
entendidos no estudo como instrumentos que serviram de mediadores, seja
para observar como operavam os processos mentais dos participantes do
estudo, seja para verificar suas evoluções.A partir de uma intervenção
pedagógica-terapêutica, que utilizou a estratégia lúdica,
disponibilizando objetos e materiais de jogo, pudemos observar aspectos
relevantes do comportamento dos participantes em relação a essa
variável, fundamentalmente por se tratar de crianças autistas.
No caso de Rohe, pudemos verificar que há
um crescente envolvimento do menino com os materiais disponíveis na
sessão, desde a mera manipulação autística destes objetos, até a
exploração criativa dos mesmos.
A corda, por exemplo, tinha várias funções
nas sessões. Servia para amarrar, puxar os participantes, caminhar sobre
ela, oportunizando sensações diferentes ao tocá-la com os pés. Também
servia para aproximar e afastar as crianças na medida certa em que cada
um suportasse o toque corporal do outro, sem que arriscassem
retraimentos ou sentimentos confusos, comuns nas crianças autistas.
O contato corporal e o estímulo tátil são
situações de muito sofrimento para alguns autistas. Rohe não necessitou
durante muito tempo da intermediação dos materiais para esses contatos.
Grandin (1999) nos oferece alguns depoimentos sobre a maneira como
sentia falta do toque corporal:
“Nossos corpos pedem o contato humano, mas
quando esse contato se estabelece, nós nos retraímos, porque nos provoca
dor e confusão. Foi só quando já tinha quase chegado aos trintas anos
que eu consegui trocar apertos de mão com as pessoas ou olhar
diretamente em seus olhos” (p.38).
Os materiais não tinham a mesma função para
todos os participantes da pesquisa. Theo, em vários encontros, fez uso
desses recursos para deitar-se ou apoiar seu corpo sobre os mesmos.
Estava-se deitado sobre um colchão ou apoiado sobre uma bola de bubet, o
facilitador interferia, procurando demonstrar outras maneiras de
utilizar estes materiais. Também analisamos a importância que teve a
corda, para Rohe, ao ser utilizada como instrumento de aproximação entre
ele e um facilitador da sessão. Aparentemente, esta brincadeira poderia
ser vista como apenas um exercício de correr amarrado com o
profissional, entretanto, com a continuidade destas propostas,
poderíamos questionar a possibilidade deste exercício ter conteúdo de um
jogo simbólico, por exemplo, o faz-de-conta de ser um cavalo amarrado e
correndo.
O espaldar para Rohe, tem sido utilizado
para subir nos degraus, jogar-se do alto sobre uma pilha de colchões,
emitindo gritos e sorrisos. O plinto servia para subir, contar até três e
se jogar sobre os colchões, ‘fingindo nadar’ sobre eles.
Salientamos o destaque que se pode fazer
com um determinado objeto ou material. Por exemplo, um “plinto” sugere
que se suba e dele se salte; um espaldar, que se suba e se desça.
Tarefas que requerem estratégias mentais de realização. No caso do
salto, pudemos perceber a dificuldade que as crianças tiveram para
realizar tal tarefa sem ajuda, uma vez que envolve um impulso, uma
passagem área como se fosse uma perdida do corpo no espaço e uma caída. A
capacidade para realizar essa atividade somente foi conseguida após
longo trajeto de ajuda do facilitador, ora saltando junto, tendo as mãos
dadas, ora estimulando-os, oferecendo uma das mãos como apoio até que
conseguissem realizá-la sozinhos.
ASPECTOS CONCLUSIVOS
Através das observações seletivas que
realizamos, ficamos com maior convicção de que o diagnóstico que a
criança autista possui não é um ponto final, mas a certeza de que
podemos intervir e contribuir para o seu desenvolvimento de acordo com
as suas possibilidades e dificuldades apresentadas pela síndrome.
Esta questão ficou bem definida ao
verificarmos que as crianças da investigação aceitaram as provocações
dos facilitadores e entraram nas atividades propostas também de maneira
espontânea. Gradativamente, fomos acompanhando relações que se
estabeleceram entre as crianças e os materiais, e que os materiais
favoreceram a aproximação entre elas e os facilitadores, entre elas e o
grupo e na relação consigo mesmas.
Em determinadas situações, ficou-nos
evidenciado que as atividades realizadas não eram meras repetições
mecânicas; demonstravam intenção, desenvolvimento e satisfação. Havia,
ali, marca de criatividade.
Quando conseguiam realizar alguma
atividade, como balançar-se em uma corda, saltar de um banco, subir em
um espaldar com ajuda dos facilitadores, também havia demonstração de
prazer e, ousaríamos dizer, de vitória por terem conseguido, mesmo com
ajuda do outro.
Podemos observar que estes materiais podem
servir de uma maneira para um grupo de crianças, e de outra maneira para
outro grupo. Este fato reforça nossa convicção de que não podemos fazer
uma lista destes recursos, e sairmos “receitando-os” sem um estudo
individualizado, para determinado grupo ou criança. Os cuidados para a
escolha e utilização dos recursos materiais são de importância vital
para dar continuidade às sessões e favorecer o desenvolvimento de cada
criança participante.
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