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Nos depoimentos de mães, pais e especialistas no assunto, as
semelhanças são marcantes. Os portadores do Transtorno do Déficit de
Atenção e Hiperatividade (TDAH) são impulsivos, agitados, irrequietos,
ansiosos e tão inteligentes e carinhosos quanto mal compreendidos e
rejeitados – o que acontece porque, quando se trata de TDAH, falta
informação e sobra preconceito.
Com um ano e quatro meses de idade, em 1986, Fernando começou a
andar. A partir daí, ficar parado tornou-se algo simplesmente impossível
para ele. Um ano e dois meses depois, sua mãe, Mara Narciso –
endocrinologista, acadêmica de jornalismo e autora do livro Segurando a hiperatividade
– decidiu levá-lo a uma psicóloga. Por ser “acelerado” e “incapaz de
sossegar um minuto que fosse”, Fernando ficava sujeito a toda sorte de
acidentes. “Machucava a toda hora, e demorou muitos anos para entender
que buraco era buraco e que pular dentro dele como se não existisse o
faria machucar. Corria na direção de uma escada como se não houvesse
desníveis”, relata Mara.
Quando Fernando tinha quatro anos, sua mãe o levou a um neuropediatra
em Belo Horizonte que definiu o que ele tinha como Disfunção Cerebral
Mínima, problema que se caracterizava exatamente pela hiperatividade. O
médico disse a Mara que Fernando era o “segundo caso mais grave” que ele
já havia visto em 25 anos.
Hoje, cerca de 3% das crianças e de 1% a 1,5% dos adultos de todo o
mundo apresentam o TDAH, que também é conhecido como DDA (Distúrbio do
Déficit de Atenção) ou, em inglês, ADD, ADHD ou AD/HD. A incidência
parece ser maior entre o sexo masculino, mas os especialistas consideram
esse dado ainda em discussão. Essas informações foram reveladas pelo
psiquiatra Mario Louzã Neto, coordenador do Projeto Déficit de Atenção e
Hiperatividade no Adulto (PRODATH) do Hospital das Clínicas da
Faculdade de Medicina da USP – Universidade de São Paulo, em entrevista
divulgada neste site.
Conforme explica a neurologista Lais Pires, a causa do TDAH está
relacionada a uma predisposição genética – o que já foi comprovado
através de estudos, inclusive com a análise comportamental de gêmeos
univitelinos que viveram em ambientes separados e apresentaram, ambos,
características de TDAH – e também a fatores ambientais: bebês
prematuros podem ter uma chance maior de apresentar o Transtorno, que
nesse caso estaria relacionado ao sofrimento ao nascer.
A hiperatividade é apenas uma das três principais características
associadas ao TDAH. As outras duas são a facilidade para se distrair e a
impulsividade. Nas meninas, é mais comum a forma do TDAH em que
predomina a desatenção: elas parecem tranqüilas, e na sala de aula
muitas vezes se mostram quietas, sem perturbar o ambiente como os
meninos. No entanto, essa aparente calma esconde um pensamento que voa e
se distrai com ele mesmo, e a falta de aproveitamento escolar é
refletida nas notas do boletim. Já nos meninos é mais comum a forma de
TDAH que une a hiperatividade com a impulsividade, podendo ou não ser
acompanhadas da tendência à distração. O aparecimento das três formas
juntas configura a forma mista de TDAH.
A dopamina, estimulante que ajuda a fixar a atenção, está presente em
menor quantidade no cérebro de quem apresenta o TDAH. Uma sensação de
prazer é capaz de aumentar a produção e o aproveitamento da dopamina
pelo cérebro – por isso quem tem TDAH, quando faz uma atividade de que
gosta, é capaz de se concentrar melhor nela do que numa outra que não
lhe é tão aprazível. Isso explica queixas constantes de pais com filhos
agitadíssimos e com dificuldade para se concentrar nos estudos, mas que
se saem bem no videogame: enquanto a tecnologia evolui a passos largos e
os estímulos nesse sentido se tornam cada vez maiores às crianças, a
escola permanece no mesmo formato e se torna pouco atraente em
comparação com outros estímulos. Apesar de o nome do Transtorno ser
constituído da expressão “déficit de atenção”, a Dra. Lais destaca que
na verdade os portadores do TDAH têm “excesso de atenção”. “Eles não
conseguem evitar que os estímulos competitivos entrem naquele momento em
que eles têm que prestar atenção numa outra coisa; é como se fosse uma
antena que estivesse captando interferências de outras”, define. E não
apenas fatores externos funcionam como estímulos: os próprios
pensamentos também.
O ambiente agitado que marca os dias de hoje, com a grande quantidade
de estímulos que o constituem, é um fator que propicia a detecção da
presença do TDAH num indivíduo. Dra. Lais destaca que, em outros tempos,
os estímulos eram menos variados e as possibilidades de “perder o foco”
eram também menores. Com isso, menos casos eram observados. Com o
passar dos anos, cada vez mais casos de TDAH têm sido reconhecidos por
pais, professores e especialistas.
Diagnóstico requer cuidado; tratamento é indispensável
Diagnóstico requer cuidado; tratamento é indispensável
Segundo a Agência Nacional de Vigilância Sanitária, o consumo de
metilfenidato -anfetamínico potente usado no controle do TDAH, por agir
aumentando a dopamina no cérebro – passou de 23 kg em 2000 para 93 kg em
2003, no Brasil. é comum crianças com TDAH tomarem remédio com esse
princípio ativo para, entre outros fins, conseguir a concentração
necessária para evitar o baixo rendimento escolar. A partir de uma
análise desse panorama, a psicóloga Helena Rego Monteiro acredita que
esteja ocorrendo o que ela chama de “medicalização da vida escolar”.
“Hoje, o que parece existir como única opção é a lente da
biomedicalização querendo ensinar que não só o ‘fracasso’ do escolar e
suas condutas disruptivas, mas a vida como um todo tem um determinado
remédio, uma pílula. Hoje, não é raro encontrar em mochilas escolares
uma caixa de remédio dividindo o espaço com o lanche, os cadernos e as
canetas, dando-nos a impressão de que, naturalmente, fazem parte do
material escolar”.
É fato que muitas das ocorrências comuns ao comportamento de alguém
que tem TDAH podem ser identificadas em pessoas que não têm o distúrbio.
E isso exige atenção. “Quem, nos dias de hoje, não faz mais de uma
coisa ao mesmo tempo, ou melhor, várias coisas ao mesmo tempo? Quem não
sente medo, não sente uma demasiada tristeza em certos confrontos com as
produções de subjetividades do mundo contemporâneo? Então somos todos
desatentos, hiperativos, portadores do pânico ou deprimidos?”, questiona
Helena, fazendo um alerta para que nem todos sejam taxados de TDAHs
antecipada e equivocadamente.
Para o cuidado necessário ao diagnóstico do TDAH, Dra. Lais tem uma
definição que segue à risca: só existe transtorno quando há prejuízo.
“Tem pessoas que tiram partido da sua hiperatividade: elas conseguem
fazer muitas coisas ao mesmo tempo e fazem bem. Então não tem
transtorno, elas vivem muito bem com a hiperatividade delas”, diz,
acrescentando que muitas vezes características de TDAH existentes num
indivíduo não têm efeito significativo em sua vida e especificando que o
maior problema do TDAH é atrapalhar as funções executivas.
Nas crianças, essas funções seriam atividades do dia-a-dia como
almoçar ou tomar banho, por exemplo, que poderiam deixar de ser momentos
simples para se tornar demorados ou complicados, mostrando a
dificuldade – comum aos portadores de TDAH – de começar e terminar uma
tarefa. Na escola, as funções poderiam ser escrever uma redação ou ler o
enunciado de uma questão de prova. Muitas vezes quem tem TDAH se sai
mal em testes simplesmente porque não teve paciência de ler um texto até
o fim. O grau de inteligência que eles apresentam é igual ao dos demais
alunos, mas como seu desempenho passa a ser sempre baixo, eles se
sentem desestimulados e mais uma vez a escola perde para uma série de
outras atividades mais interessantes em que eles se saem bem. À medida
que um indivíduo cresce, o grau de dificuldade das tarefas que ele
precisa realizar tende a aumentar e, com isso, a frustração por não
terminar as atividades ou não obter sucesso ao realizá-las também
aumenta.
Dra. Helena questiona a maneira como é feita a separação entre
crianças “normais e anormais” e acredita que “o pior efeito do TDAH para
a vida de crianças e adultos é ser rotulado pelo saber-poder médico
como um ‘doente’”. A psicóloga explica que, para definir a existência do
TDAH em indivíduos, os especialistas se baseiam em um manual, que ela
não considera suficiente. “A partir do manual seremos capazes de separar
doentes e sadios, normais e anormais; poderemos identificar aqueles que
desviam do padrão. Nesse sentido, a pergunta que temos a fazer é:
desviar do padrão não é bom para quem?”
Dra. Lais conta que, antes de receitar remédio para um paciente, faz
uma análise completa de como ele se comporta na escola, mas não se
limita a isso. Ela também procura saber, através de relatórios, como é
seu paciente em todos os outros ambientes de sua vida – em casa e em
momentos de socialização e brincadeiras, por exemplo. Somente quando
constata que em todos os setores ele apresenta características de TDAH
ela tem certeza da existência do Transtorno e prescreve a medicação. Se o
problema se verificar em apenas uma das áreas, a solução é diferente,
pois não se trata de TDAH e então receitar metilfenidato seria um
equívoco.
Mara sempre achou Fernando diferente das outras crianças, levou-o a
vários médicos até se certificar do que tinha e concorda com a Dra.
Lais, afirmando que os prejuízos do TDAH são indiscutivelmente sentidos
por ele em vários aspectos de sua vida. “Após quase cinco anos em duas
faculdades, Turismo e Hotelaria, e depois Design, em que cursa o quinto
período, meu filho pensa em largar tudo novamente. Está tentando entrar
no mercado de trabalho fazendo Auto-Cad, é muito só e isolado, sofre
muito com isso, e com todos os tratamentos que fez, ainda não se
encontrou. Isso não é invencionice”.
Se ser taxado de “doente” é ruim, não ser diagnosticado e tratado
pode trazer conseqüências ainda piores para quem tem TDAH. O site da
Associação Brasileira de Déficit de Atenção (ABDA) afirma que uma de
suas grandes lutas é que “o TDAH seja identificado num grande numero de
crianças e adolescentes que estão enfrentando grandes dificuldades na
vida acadêmica, sem receber diagnóstico ou tratamento adequado”. A
associação enfatiza ainda que, mesmo com o aumento de 940% das vendas de
metilfenidato de 2000 para 2004, apenas 5% dos pacientes com TDAH no
Brasil são tratados.
Um grande problema da atualidade seria o uso indevido do
metilfenidato. Pessoas que não precisam de fato da substância, mas que
sabem que o medicamento resulta num aumento de concentração e poder de
foco, têm recorrido a ele para render mais no trabalho ou conseguir dar
conta, com sucesso, de um grande número de atividades, pressões e
responsabilidades.
Para cada caso, um tratamento
Conforme enfatiza a Dra. Lais, a neurologia, sozinha, é capaz de
tratar casos em que o TDAH se apresenta isolado de alguma outra condição
associada – as chamadas comorbidades. Para essas ocorrências, uma
medicação baseada em metilfenidato seria suficiente. No entanto, 2/3 das
pessoas que têm TDAH têm comorbidades, que exigem a associação de
tratamentos diferentes à neurologia. Um transtorno de ansiedade, por
exemplo, poderia ser acompanhado por uma terapia
cognitivo-comportamental; o aparecimento de uma dislexia necessitaria do
acompanhamento de uma fonoaudióloga; transtornos afetivos de humor
bipolar exigiriam o suporte de um psiquiatra e até de uma outra
medicação.
Fernando representa um caso em que foi necessário associar
tratamentos diferentes. Hoje um estudante universitário de 23 anos de
idade, ele já fez onze de psicoterapia e cinco de terapia
cognitivo-comportamental. Só começou a tomar metilfenidato aos 16 anos
de idade. Mara sentiu que o remédio, apesar de contribuir positivamente,
não é suficiente sozinho e serve a um propósito específico: ajudá-lo a
se concentrar nas aulas.
Dra. Lais admite que o metilfenidato, apesar de geralmente ser bem
tolerado, pode ter efeitos colaterais, mas somente enquanto a substância
ainda estiver no sangue de quem a ingeriu. Inibição do apetite é
geralmente o primeiro efeito, mas também pode ocorrer um aumento da
emotividade em crianças. Taquicardia e dor de cabeça muito raramente
aparecem. Associado à perda de apetite está o temor dos pais quanto a
problemas de crescimento geralmente ligados à medicação. Na verdade, o
que acontece é que em algumas fases da vida de quem toma o remédio o
crescimento fica menos acelerado do que poderia – mas a altura final do
indivíduo não é afetada, conforme explica a neurologista.
A especialista explica ainda que o risco de o medicamento aumentar o
uso de drogas é um mito que não procede, pois geralmente quem tem TDAH
recorre às drogas procurando alívio e fuga após sofrer inúmeras e
sucessivas frustrações, e o remédio serve justamente para ajudar a
evitá-las e assim também diminuir a possibilidade de que as drogas sejam
buscadas.
TDAH em família
Segundo a neuropsiquiatra Tania Almeida, especializada no atendimento
a famílias que têm membros com TDAH, é importante que os portadores do
Transtorno e as pessoas que convivem com eles conheçam a maneira como
funcionam. “O TDAH é uma disfunção que se expressa por comportamentos
peculiares que, se conhecidos, podem ser levados em conta pelo próprio
portador – para criar mecanismos compensatórios – e pelos que o cercam –
para adequarem suas cobranças e ampliarem suas manifestações de
reconhecimento pelo esforço que os portadores fazem para se adaptarem a
determinadas exigências sociais”.
Uma dica é evitar a cobrança excessiva, valorizando o que é realmente importante. “Eles (os portadores de TDAH),
eventualmente, precisam de mais tempo e mais silêncio para fazerem
exercícios escolares e provas; precisam ser auxiliados a criar
mecanismos compensatórios para não esquecer, não perder, se organizar,
se concentrar; precisam que nós selecionemos dentre as mil e uma
incorreções de seu comportamento, poucas para chamarmos atenção, sob
pena de serem repreendidos ininterruptamente e ampliarem seu
comprometimento no relativo à auto-estima”, alerta Tania.
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