Olívia Balster Fiore-CorreiaI; Carolina LampreiaII; Flavia Sollero-de-CamposIII
IMestre e Doutoranda em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio)
IIDoutora em Psicologia Clínica; Professora do Programa de Pós-Graduação e Pesquisa em Psicologia Clínica e do Departamento de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio)
IIIDoutora em Psicologia Clínica; Professora do Departamento de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio)
IIDoutora em Psicologia Clínica; Professora do Programa de Pós-Graduação e Pesquisa em Psicologia Clínica e do Departamento de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio)
IIIDoutora em Psicologia Clínica; Professora do Departamento de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio)
RESUMO
Crianças com
transtorno autístico apresentam falhas significativas na emergência da
autoconsciência reflexiva. O objetivo do presente trabalho é analisar os
processos envolvidos nestas falhas através de uma discussão das
abordagens naturalista e construtivista no campo da filosofia, da
neurociência, da psicologia do desenvolvimento e do transtorno
autístico. Conclui-se que a abordagem construtivista permite uma melhor
compreensão destas falhas, por considerar que elas advêm de prejuízos
inicialmente inatos na capacidade de identificação afetiva destas
crianças que prejudicam a interação social e o desenvolvimento da
linguagem e, por conseguinte, sua capacidade autorreflexiva.
Palavras-chave: transtorno autístico, desenvolvimento infantil, autoconsciência.
INTRODUÇÃO
O transtorno
autístico está inserido dentro dos transtornos globais do
desenvolvimento, nos quais os sintomas para o diagnóstico devem ser
identificados até os três anos de idade da criança (DSM-IV-TR, 2002).
Sua definição envolve prejuízos qualitativos em três áreas principais:
interações sociais, com a criança apresentando déficits severos em sua
capacidade de iniciar, responder, manter ou estabelecer interações com
as pessoas; comunicação, tanto considerando comportamentos comunicativos
não-verbais, como gestos e sorrisos, e comportamentos comunicativos
verbais, como vocalizações e fala; e comportamento – a criança apresenta
comportamentos e interesses restritos e repetitivos.
Embora a tríade
seja o que permite o diagnóstico, outros prejuízos podem ser
identificados, como falhas severas no sistema sensorial destas crianças,
no desenvolvimento do brincar, na capacidade de compreender regras
sociais e no desenvolvimento da autoconsciência (Baranek, David, Poe,
Stone & Watson, 2006; Hobson, 2002; Hobson, Chidambi, Lee &
Meyer, 2006), esta considerada por Hobson e colaboradores (2006) como a
capacidade de autorreflexividade, ou seja, a habilidade exclusiva da
espécie humana de refletir acerca de seus próprios sentimentos e ações,
possibilitando ao ser humano, dentre outras conquistas, o planejamento
de seus atos, a reflexão de suas condutas e a compreensão de seus
sentimentos.
Ainda que
imprescindível para o desenvolvimento humano, a autoconsciência tem sido
pouco explorada nos estudos acerca do transtorno autístico, embora o
tema seja de relevância fundamental para um melhor entendimento do
transtorno e desenvolvimento de formas mais eficazes de tratamento para
os seus portadores. Na realidade, a autoconsciência tem sido estudada
predominantemente pela filosofia e pela neurociência como um subtema das
análises sobre a consciência, importante área de investigação nestas
duas disciplinas. Devido a isto, apenas algumas referências têm sido
encontradas até o momento sobre a autoconsciência em sujeitos autistas e
elas se opõem ao tratar das falhas do seu aparecimento nestes sujeitos
(Frith & Happé, 1999; Hobson et al., 2006). Isto ocorre porque
existem duas perspectivas distintas que falam sobre o tema: 1 – a
perspectiva cognitivista, representada pela Teoria da Mente, que defende
um déficit cognitivo inato e primário aos prejuízos na capacidade de
autorreflexividade e 2 – a perspectiva construtivista1,
que deriva os prejuízos no desenvolvimento da autoconsciência de falhas
iniciais nas interações sociais e na construção da linguagem destes
sujeitos.
O objetivo do
presente artigo é analisar os processos e problemas envolvidos no
desenvolvimento da autoconsciência no transtorno autístico segundo uma
perspectiva construtivista. Para alcançar tal intento, será necessário
apresentar brevemente, em um primeiro momento, as perspectivas
cognitivista e construtivista na filosofia, representadas,
respectivamente, pelo pensamento de Descartes ([1637] 1996) e
Wittgenstein (1958), e uma discussão contemporânea no campo da
neurociência, a de Damásio (1995, 2000).
Em um segundo momento, as
perspectivas cognitivista e construtivista serão apresentadas no campo
da psicologia do desenvolvimento para que se compreenda como ocorre o
desenvolvimento da autoconsciência em crianças com desenvolvimento
típico. Somente então, em um terceiro momento, será possível compreender
como ocorrem as falhas no aparecimento da autoconsciência em sujeitos
autistas a partir da perspectiva cognitivista, representada pela Teoria
da Mente (Frith & Happé, 1999), e da perspectiva construtivista,
representada pelo pensamento de Hobson e colaboradores (2006).
Para levar a
cabo esta discussão, um aspecto fundamental, que se refere à perspectiva
teórica utilizada, precisa ser considerado. A Teoria da Mente, ao
adotar um enfoque determinista, considera apenas a dimensão
natural/cognitiva à autoconsciência, enquanto a perspectiva
construtivista concebe a autoconsciência como uma construção social e
linguística a partir de uma base corporal. Por fim, serão feitas as
considerações finais.
Cabe ressaltar
que, conforme será visto adiante, ainda que a autoconsciência encontre
primórdios no desenvolvimento de sujeitos autistas, a sua capacidade
autorreflexiva encontra-se seriamente prejudicada. Por isso, é
fundamental se compreender o ponto de vista construtivista. Afinal, se
esta visão acredita que a autoconsciência é constituída no seio de
interações sociais, como pensar o desenvolvimento da autoconsciência no
autismo?
A NOÇÃO DE AUTOCONSCIÊNCIA NA FILOSOFIA E NA NEUROCIÊNCIA
A oposição
entre a origem natural dos comportamentos humanos e a construção destes
mesmos comportamentos no desenvolvimento humano a partir do convívio
social remonta a questões lançadas por pensadores como Descartes ([1637]
1996) e Wittgenstein (1958). Daí a importância de se retomar o
pensamento original destes filósofos e compreender perspectivas
contemporâneas, advindas da neurociência, que podem lançar luz sobre
questões atuais acerca da discussão do desenvolvimento da
autoconsciência humana.
A concepção
cartesiana de autoconsciência considera que esta é uma capacidade inata
que envolve um conhecimento direto, indubitável e incorrigível de nosso
mundo interno; em suma, um acesso privilegiado. Como afirma Descartes
([1637] 1996):
examinando atentamente o que eu era [...] reconheci que eu era uma substância, cuja essência ou natureza é pensar, e que, para existir, não necessita de nenhum lugar nem depende de coisa alguma material. De sorte que este eu, isto é, a alma pela qual sou o que sou, é inteiramente distinta do corpo, e até mais fácil de conhecer que ele (Descartes, [1637] 1996: 38-39; grifo nosso).
Isso significa
que cada pessoa vê, ouve, experimenta alegria e tristeza e usa sentenças
como "vejo azul", "tenho dor de dente" para descrever seu estado
interno, da mesma maneira que descreve sobre como os outros estão – "ele
vê azul", "ele tem dor de dente". As expressões psicológicas são
concebidas como nomes de objetos, estados, eventos ou processos
internos. Isso parece ser possível porque a pessoa é autoconsciente,
consciente das experiências de seu self, algo situado no corpo. Concebida desta maneira, a consciência do self é uma forma de percepção ou "sentido interno", envolve uma introspecção. E nossas observações daquilo que ocorre em nossoself são privilegiadas, tendo em vista que o "interno" só é diretamente acessível ao self.
Em suma, segundo esta perspectiva, nossas verbalizações de sentenças
psicológicas na primeira pessoa parecem ser relatos de como as coisas
estão conosco, descrições de eventos "internos" que observamos em foro
interno (Hacker, 2007).
Segundo a
perspectiva construtivista de Wittgenstein (1958), eminente
representante da vertente pragmática da filosofia da linguagem, esta
visão é enganadora. Não é que não haja tal coisa como observar nossos
próprios estados mentais, descrever nossas experiências e relatá-las.
Certamente há tal coisa como autoconhecimento e autoconsciência; mas não
consiste de um conjunto de relatos e descrições de nossas sensações,
percepções, pensamentos e sentimentos. Descrevemos nosso estado mental,
mas isso é um jogo de linguagem diferente que não deve ser assimilado ao
jogo de linguagem referente à descrição de objetos externos e
comportamentos de outras pessoas. A confusão resulta de uma
não-compreensão, por parte dos filósofos, da função do "eu" nas
sentenças na primeira pessoa. Por conceberem erradamente a gramática dos
verbos psicológicos e epistêmicos, construíram uma falsa imagem do que
chamam de "autoconsciência".
Para Wittgenstein, as afirmações na
primeira pessoa funcionam como declarações e não como descrições de
eventos internos. Por exemplo, a criança se machuca e grita, e nós a
ensinamos a substituir seus gritos pela verbalização "dói" ou "tenho
dor". Neste caso, a verbalização de dor não se apoia em uma
introspecção. Ela é, como o grito, uma expressão ou declaração de dor e
não uma afirmação cognitiva ou epistêmica (Hacker, 2007; Lampreia,
1992). Contudo, deve ser observado que ela é uma declaração aprendida no
seio de práticas sociais. Consequentemente, a autoconsciência deve ser
concebida como uma construção social que se dá pela linguagem.
No campo das
neurociências, vários neurocientistas (Edelman, 1992; Penrose, 1999) têm
se dedicado ao estudo e a propostas de "teorias da consciência"
(Sollero-de-Campos, 2000; Sollero-de-Campos, Winograd &
Landeira-Fernandez, 2007). No que diz respeito ao presente artigo,
consideramos a proposta de António Damásio (1995, 2000) como a mais
pertinente por propor, de maneira consistente, uma teoria da construção
de um self a
começar como individualidade biológica até chegar a uma autoconsciência
humana plena, na e pela linguagem. Ele coloca as bases do self na própria existência de cada indivíduo biológico. Em O erro de Descartes (Damásio,
1995), o autor propõe que vários tipos de raciocínio prático e social
dependeriam de nossa capacidade de experimentar sensações e sentimentos.
E em O mistério da consciência (Damásio,
2000) pergunta o que tornaria possível sentirmos que nossas
experiências e nossos pensamentos nos pertencem – como temos o
"sentimento de si", ou a autoconsciência.
De acordo com Damásio (1995), a
base das capacidades de consciência e self deve
ser encontrada nas emoções – as primárias ligadas ao sistema límbico e
as secundárias, ou aprendidas, resultantes da integração entre o córtex
frontal e o sistema límbico. Uma falha nesta integração levaria a uma
incapacidade de desenvolver emoções secundárias, ou sentimentos. Poderia
haver autoconsciência, mas precária e insuficiente para manter um
relacionamento social adequado aos padrões da cultura.
Damásio propõe vários tipos de consciências, assim como uma hierarquia de selves.
A consciência se dá em graus ou etapas que vão da não-consciência –
coma, anestesia profunda, sono sem sonhos – até a consciência moral
plenamente linguística em humanos. Ela começa quando os cérebros
adquirem o poder de contar uma história sem palavras e os estados do
organismo vivo estão continuamente sendo alterados por encontros com
objetos ou eventos.
A consciência emerge quando essa história primordial
– a história de um objeto alterando de forma causal o estado do corpo –
pode ser contada usando o vocabulário universal não-verbal dos sinais
corporais.
Os vários tipos
de consciência incluem, segundo Damásio (2000), a consciência central, a
consciência ampliada e a consciência reflexiva. A primeira é a base
para a existência da segunda, que possui vários níveis ou graus e
fornece um complexo sentido de self e
memórias permanentes. A consciência ampliada "em seu ápice [...] é
exclusivamente humana" (Damásio, 2000: 251). Ela é "a capacidade de
estar consciente de uma gama enorme de entidades e de eventos, ou seja, a
capacidade de gerar um senso de perspectiva individual, de propriedade e
da condição de agente sobre uma gama de conhecimentos maior que a
abrangida pela consciência central" (Damásio, 2000: 254). Como a
consciência ampliada é muito mais complexa que a central, ela viabiliza
as formas de consciência reflexiva. Esta última seria basicamente a
capacidade de pensar sobre suas próprias experiências conscientes por si
mesmas. É o ápice da hierarquia, característica dos humanos.
A noção de self de Damásio (1995) vai da individualidade biológica até a individualidade mais complexa humana, a partir da linguagem. O self surge
a partir da consciência, é um sentimento que aparece desde a coisa mais
simples que é o organismo ser modificado pelo encontro com um objeto
percebido, lembrado ou imaginado em graus crescentes de complexidade
cerebral. A hierarquia de selves proposta por Damásio (2000) envolve um proto-self, um self central e um self autobiográfico.
O primeiro é o mais simples e não-consciente. Envolve um conjunto
coerente de padrões neurais que mapeia o estado do organismo; é o
precedente biológico do self. O self central baseia-se na consciência central e mapeia o proto-self.
É o primeiro nível onde aparece a consciência. Está distribuído por
todo o corpo, envolve a experiência imediata e é recriado a partir de
sincronizações de sistemas neurais próximos. Finalmente, o self autobiográfico
que resulta da consciência ampliada. Pode ser pré-linguístico –
presente em cães e macacos – ou linguístico com expansão da memória de
longo prazo. Em suma, para Damásio (2000), os tipos de consciência e self exclusivamente humanos são a consciência ampliada em seu ápice, a consciência reflexiva, a consciência moral e o self autobiográfico linguístico.
A autoconsciência é tratada muito ligeiramente por Damásio. Envolve um sentimento de si, mas não é uma consciência de si ou self.
Começa através da capacidade do cérebro de gerar uma imagem "do
organismo no ato de perceber e responder a um objeto" (Damásio, 1995:
248). Consiste, inicialmente, em uma narrativa sem linguagem ancorada
"nos instrumentos representacionais dos sistemas sensorial e motor no
espaço e no tempo" (Damásio, 1995: 249) e não ocorre como um "tudo ou
nada". Mas a autoconsciência, que pode se dar sob uma forma imagética,
isto é, não-verbal, se desdobra na plena autoconsciência humana – na e
pela linguagem. Consideramos que esta concepção poderia abrir caminho
para o estudo da existência da autoconsciência em pessoas diagnosticadas
no espectro autista.
EMERGÊNCIA DA AUTOCONSCIÊNCIA NO DESENVOLVIMENTO INFANTIL TÍPICO
Considerando o
campo da psicologia do desenvolvimento, a oposição entre as visões
naturalista e construtivista permanece. Oriundas de diferentes formas de
pensar, conforme visto, estas perspectivas apresentam modos distintos
de compreender a origem e o aparecimento da autoconsciência no
desenvolvimento infantil. Deste modo, é imprescindível a compreensão de
como estas posições abordam a questão da autoconsciência no
desenvolvimento infantil típico para que em seguida seja possível
expandir este conhecimento para o entendimento do fenômeno no
desenvolvimento de crianças autistas.
Sendo assim, na
área da psicologia do desenvolvimento, uma versão contemporânea da
visão cartesiana de mente e autoconsciência está representada pela
Teoria da Mente. Segundo esta perspectiva, ter uma teoria da mente
significa ser capaz de atribuir estados mentais – crenças, desejos,
intenções, sentimentos, etc. – aos outros e a si próprio. Ou seja, as
habilidades para atribuir estados mentais a si mesmo e aos outros
estariam relacionadas.
Neste caso, segundo Frith & Happé (1999),
importantes representantes desta perspectiva, um mecanismo
neurocognitivo inato específico subjacente de teoria da mente seria
vital para o desenvolvimento da autoconsciência. De acordo com essas
autoras, quando as crianças são capazes de relatar seus próprios estados
mentais, elas também são capazes de relatar estados mentais dos outros
e, quando não são capazes de relatar e compreender estados psicológicos
dos outros, também não podem relatar seus próprios estados mentais. Do
ponto de vista cognitivo, Frith & Happé (1999) argumentam que as
atribuições de pensamentos aos outros e a si mesmo compartilham a mesma
capacidade de metarrepresentar, ou representação de segunda ordem2,
embora pareçam ser diferentes por considerarem que os próprios estados
mentais não precisam ser inferidos através da observação como os dos
outros e terem menor probabilidade de estarem errados.
A perspectiva
construtivista oferece uma posição distinta acerca do desenvolvimento
infantil típico (Lampreia, 2008) e do aparecimento da autoconsciência.
Opondo-se a uma visão cartesiana e determinista, esta abordagem
considera que a autoconsciência não se origina de um mecanismo
neurocognitivo programado para ser ativado em uma idade determinada. Ao
contrário, a autoconsciência não é programada, ela se desenvolve
inicialmente ao longo das trocas afetivas e sociais entre sujeitos,
ocorridas desde o primeiro respirar de recém-nascidos, e as suas mães3,
e posteriormente pela linguagem. Nesta construção, existem precursores
que dão condições para que a autoconsciência possa emergir no
desenvolvimento infantil típico.
Estes precursores são o desenvolvimento
do próprio self da
criança, visto que é ele que a capacita perceber-se inicialmente
diferente dos demais para, então, se tornar objeto de análise. Contudo, o
próprio self também
tem os seus precursores. Ele se desenvolve a partir de um processo que
depende das trocas afetivas entre o bebê e a sua mãe, primeiramente em
um nível físico, até poder alcançar um nível reflexivo. Stern (1992) e
Hobson (2002) são autores que têm se dedicado à compreensão dos
processos interacionais do desenvolvimento humano típico e defendem que
são as interações afetivas que possibilitam a construção inicial de um self4 corporal e posteriormente de um self subjetivo e um selfverbal,
dando condições para que a autoconsciência possa emergir. Hobson (2002;
Hobson et al., 2006; Lee & Hobson, 1994; 1998) também estende os
seus estudos para compreensão do fenômeno em sujeitos autistas, como
será visto adiante.
O início do
processo que permite a emergência da autoconsciência estaria naquilo que
Hobson (2002) define como a capacidade inata do recém-nascido de ser
sensível e responsivo às atitudes afetivas das pessoas e expressivo em
relação ao próprio afeto. Isto caracterizaria o processo de
identificação definido pela propensão inata do ser humano a registrar e
assimilar as atitudes afetivas do outro, que são expressas corporalmente
e percebidas através de seus comportamentos aparentes (Hobson et al.,
2006), possibilitando que os recém-nascidos e suas mães se engajem em
trocas afetivas recíprocas.
Alguns
comportamentos iniciais do recém-nascido podem embasar esta teoria.
Stern (1992) analisa a capacidade do bebê de sintonizar os seus
movimentos com a entonação e cadência da voz dos adultos, quando os
mesmos apresentam vocalizações pausadas e exageradas. Brazelton e Cramer
(1990) defendem que recém-nascidos buscam o contato com a mãe através
dos seus sentidos, como olhar para o rosto dela ou movimentar a cabeça
em direção à voz materna, e Meltzoff e Moore (1998) observam a
capacidade do recém-nascido de reproduzir os comportamentos de sua mãe
através de mímicas neonatais.
Segundo Hobson e
colaboradores (2006), somente através da identificação um ser humano é
capaz de conectar-se afetivamente com o outro. A partir desta conexão e
do estabelecimento de trocas afetivas recíprocas, o bebê passa a,
inicialmente, distinguir os contornos físicos e sensórios entre o seu eu
e os outros, formando um selfcorporal,
para, mais tarde, poder perceber que esta distinção ocorre também em
relação às suas orientações subjetivas, caracterizando o seu self subjetivo.
O raciocínio de
Stern (1992) permite uma melhor elucidação deste argumento. O autor
defende que os sete primeiros meses de vida do bebê são caracterizados
pelo desenvolvimento de um self corporal através da organização emergente e em seguida nuclear do self em relação aos outros selves.
Esta organização corporal ocorre a partir das experiências afetivas
compartilhadas entre o bebê e os outros, visto que as suas experiências
de integração corporal dependem da expressão de seu afeto e das reações
afetivas de sua mãe a ele. Além disso, esta organização é possibilitada
pela capacidade inata do organismo humano de traduzir uma modalidade
sensorial para outra, denominada de percepção amodal. Ela permite que os
estímulos vindos de diferentes modalidades sensoriais do bebê, como o
tato, a audição e a visão, sejam traduzidos como um estímulo integrado, o
que dá ao bebê um senso de organização de suas experiências imediatas.
Stern (1992)
também propõe o conceito de afetos de vitalidade, definidos como a
qualidade sentida pelo bebê de alguma ação de seus cuidadores sobre ele.
Assim, o bebê é capaz de sentir as sutilezas das interações, como a
intensidade de um toque e a duração de uma vocalização da mãe. Estes
níveis sutis de percepção também são capazes de ajudá-lo a experienciar
um senso de integração do eu, à medida que eles dão continência às
experiências vivenciadas pelo bebê5.
Deste modo, o processo de identificação, aliado aos processos de
integração sensorial do bebê, possibilita que ele experimente uma certa
organização de seu próprio corpo a partir do momento em que passa a ter
uma percepção global de suas experiências. Com isso, pode desenvolver
uma certa integração experiencial, que ocorre através de quatro
autoexperiências básicas: a autoagência (autoria das próprias ações), a
autocoerência (senso de ser um todo físico não fragmentado), a
autoafetividade (experienciar qualidades internas padronizadas de afetos
e sentimentos) e a auto-história (senso de continuidade).
Porém, nestes primeiros meses, é fácil perceber que os contornos que separam o self do bebê dos outros selvesestão
relacionados aos seus aspectos corporais. Somente mais tarde, estes
contornos passam a abarcar outras experiências, ligadas aos desejos,
necessidades e intenções das pessoas. Apenas neste momento, há o alcance
da própria distinção entre um self e os outros selves subjetivos,
marcados pelo reconhecimento pelo bebê de que ele tem estados mentais
diferentes dos estados mentais dos outros, mas que são compartilháveis.
De acordo com Stern (1992), isto ocorre a partir dos sete meses de vida
do bebê, quando ele passa a compreender que não só os comportamentos
manifestos e as sensações diretas que marcam o eu e o outro nucleares
podem ser compartilhados, mas que as experiências subjetivas também
podem sê-lo, através de três modos distintos. Um deles é o da atenção
compartilhada ou interatencionalidade, no qual o bebê, através de
gestos, compartilha a sua atenção por um objeto e/ou evento com o adulto
e/ou vice-versa.
O outro modo é o da interintencionalidade, no qual o
bebê compartilha as suas intenções com o adulto e tenta se comunicar com
ele seja por meio de gestos, posturas e/ou vocalizações não-verbais. E o
terceiro modo é o da interafetividade, no qual o bebê compartilha os
seus estados afetivos com o adulto. A interafetividade pode ser melhor
compreendida através da sintonia afetiva, que se desenvolve entre os
nove e quinze meses de vida do bebê. Para Stern (1992), a sintonia
afetiva é concebida como o modo de um indivíduo expressar a qualidade de
um estado afetivo compartilhado sem imitar a exata expressão
comportamental utilizada pelo seu parceiro de interação. Por exemplo, a
mãe falar com o bebê usando um tom suave e o bebê corresponder através
de movimentos suaves dirigidos a ela. Isto permite tanto uma verdadeira
intersubjetividade como também a noção por parte da criança de seus
próprios sentimentos e ações.
E, ao ser capaz disto, a criança está apta a desenvolver o seu self verbal,
caracterizando-se, a partir dos quinze meses de idade, a capacidade (da
criança) de se relacionar com os outros não apenas através de suas
experiências afetivas imediatas, mas também através de um nível abstrato
e mais impessoal da linguagem dado pelos significados compartilhados de
seu grupo social. É neste momento que ela começa a desenvolver a sua
capacidade simbólica, de fala, e de tornar o próprio eu objeto de
reflexão. Vejamos como isto ocorre voltando ao raciocínio de Hobson
(2002).
Segundo Hobson
(2002), a partir dos nove meses de idade a criança expande a sua
identificação, passando a se identificar com os comportamentos do adulto
relacionados aos objetos e eventos do mundo. Se, nos meses anteriores, a
criança estava interessada e era responsiva apenas às pessoas em si, a
partir desta idade ela se torna interessada e responsiva ao que estas
pessoas fazem com as coisas e como se sentem com relação a elas.
Deste
modo, a criança passa a estar identificada aos outros de tal maneira que
é afetada pela reação deles às coisas. Ela descobre que o mundo tem
significados devido àquilo que as pessoas sentem ou fazem com ele. Desta
maneira, ela descobre que as pessoas têm modos distintos de sentir e se
relacionar com as coisas à sua volta e também perspectivas distintas ao
se relacionarem com estes eventos. Isto permite que a criança passe a
considerar que as pessoas apresentam perspectivas e estados mentais
próprios e que ela própria também os tem. É neste período que uma nova
consciência de si e dos outros surge no desenvolvimento infantil típico.
E é por volta desta fase que as crianças estão envolvidas em imitar os
adultos, trazer objetos para mostrar aos outros a fim de compartilhar
experiências com eles – e apontam com facilidade para pedir algo fora de
seu alcance. É neste período também que a criança apresenta um
comportamento conhecido como referenciação social (Hobson, 2002), que
faz com que reaja a uma situação conforme o adulto responde
emocionalmente a ela, como, por exemplo, a criança se recusar a brincar
com um brinquedo de seu interesse porque a sua mãe mostrou-se assustada
perante ele.
Contudo, é
fácil notar que todos estes comportamentos ocorrem diante das
experiências vivenciadas momento a momento pela criança. Por isso, até
este período, a criança não é capaz de refletir sobre um comportamento
ou sobre como se sentiu em determinada situação. Ela apenas adota e
assume as atitudes dos outros em interações imediatas. A criança ainda
não possui, portanto, autoconsciência.
De acordo com
Hobson (2002), a autoconsciência só começa a aparecer a partir do
segundo ano de vida das crianças, quando elas se tornam capazes de
experienciar que são seres com orientações subjetivas próprias, que as
pessoas ao seu redor também o são e que estas orientações não precisam
estar baseadas em situações imediatas e concretas. Deste modo, as
crianças deixam de reagir às perspectivas do outro dadas apenas através
de suas expressões corporais e comportamentos imediatos, passam também a
compreender que perspectivas são essas. É a partir do momento em que
esta nova compreensão surge que as crianças podem considerar a sua
própria subjetividade como objeto de análise e reflexão.
Eis, então, que
a autoconsciência pode emergir e ser identificada por Hobson (2002) e
Hobson e colaboradores (2006) através de três principais comportamentos:
o uso adequado dos pronomes pessoais, como o "eu" e o "você"; o
aparecimento de emoções sociais, como o orgulho, a culpa e o embaraço,
chamadas assim para caracterizar a interiorização, por parte de um
indivíduo, das percepções e avaliações que os outros têm a seu respeito
(Hobson et al., 2006); e o fomento do jogo simbólico, considerado por
Leslie (1987) como a capacidade da criança de utilizar um objeto ou
evento como se fosse outra coisa.
A razão dada
por Hobson (2002) e Hobson e colaboradores (2006) para que a
autoconsciência seja identificada através destes comportamentos repousa
no fato de eles demonstrarem a capacidade da criança em experienciar que
ela é um self e que os outros também são selves,
tanto em suas dimensões corporais, quanto em sua capacidade de ter
sentimentos, intenções e necessidades que a distinguem dos demais.
Somente a partir disso, a criança é capaz de trocar perspectivas com as
pessoas, compreendendo a intenção do outro ao utilizar tais pronomes,
para, então, assumir as palavras ditas pelo outro como próprias,
desenvolvendo o uso dos pronomes pessoais, apropriar-se da avaliação dos
outros para autoavaliar-se através das emoções sociais e utilizar
significados próprios separados de sua percepção dos objetos em jogos
simbólicos.
Deste modo, a
autoconsciência reflexiva depende do compartilhar afetos advindo das
trocas sociais entre os indivíduos e dos significados que são
compartilhados através da linguagem. Somente quando um indivíduo pode
compartilhar afetos com o outro, ele se torna capaz de vivenciar uma
experiência integradora de self.
Esta integração dá condições para que o indivíduo compreenda que ele
apresenta orientações subjetivas, assim como os outros também as têm, e
que estas orientações podem ser compartilhadas tanto afetivamente quanto
através dos significados construídos através da linguagem. Isto
possibilita ao próprio self ser objeto de reflexão para si próprio.
Em síntese,
segundo a visão construtivista, a experiência da autoconsciência só pode
ser desenvolvida a partir de um nível pré-reflexivo de interações
afetivas recíprocas, no qual as experiências corporais de integração
permitem um desenvolvimento incipiente de self até atingir um nível reflexivo, através do alcance de formas mais complexas de percepção do self que
permitem a emergência da autoconsciência. Em todo este percurso, o
aspecto social e a linguagem ocupam papel primordial na construção do
sujeito e de suas aptidões exclusivamente humanas, nas quais aqui se
destaca a autoconsciência reflexiva.
Contudo, se
este é o processo encontrado ao longo do desenvolvimento infantil
típico, cabe perguntar-se a respeito do desenvolvimento da
autoconsciência em crianças autistas, nas quais há falhas severas no
relacionamento interpessoal e na construção da linguagem (Hobson, 2002).
AS FALHAS DA EMERGÊNCIA DA AUTOCONSCIÊNCIA NO DESENVOLVIMENTO DA CRIANÇA AUTISTA
Após a
compreensão da origem da autoconsciência na perspectiva da Teoria da
Mente e a compreensão de como ocorre o seu desenvolvimento segundo a
visão construtivista, é possível o entendimento das falhas no
aparecimento da autoconsciência no desenvolvimento da criança autista e
como as diferentes abordagens lidam com a questão. Entrementes, é
necessário descrever o transtorno com mais acuidade.
Levando-se em
consideração a tríade de prejuízos que identifica o transtorno autístico
nas áreas das interações sociais, comunicação e comportamento, autistas
apresentam prejuízos qualitativos no relacionamento social com o outro,
apresentando ausência na participação de jogos sociais, falta de
percepção dos sentimentos dos outros, falhas no desenvolvimento de
relações recíprocas com adultos e pares, dentre outros. Além disso,
apresentam prejuízos qualitativos na comunicação não-verbal,
apresentando déficits no contato ocular, expressões faciais, gestos
comunicativos e fala funcional. A fala, quando existente, é ecolálica ou
sem expressões afetivas; o sujeito não a utiliza para fins
comunicativos. Por fim, os prejuízos qualitativos no comportamento
referem-se aos movimentos corporais estereotipados, preocupação
persistente com partes de objetos, ausência de jogo simbólico,
insistência em seguir rotinas, dentre outros (DSM-IV-TR, 2002).
Embora a
etiologia do transtorno ainda seja desconhecida, as diferentes
abordagens procuram explicações distintas para a manifestação da
diversidade dos sintomas (Lampreia, 2004). É assim que a abordagem
naturalista, representada pela Teoria da Mente, defende que sujeitos
autistas apresentam um déficit cognitivo inato, responsável por todos os
sintomas posteriores. Portanto, em se tratando da autoconsciência, a
perspectiva da Teoria da Mente argumenta, no caso do autismo, a partir
de resultados experimentais, que
indivíduos com autismo podem saber tão pouco sobre suas próprias mentes quanto sobre a mente dos outros. Não é que eles não tenham estados mentais, mas, em um sentido importante, são incapazes de refletir sobre seus estados mentais. Eles não possuem a maquinária cognitiva para representar seus pensamentos e sentimentos como pensamentos e sentimentos. Da mesma maneira, embora sejam capazes de observar o comportamento e expressões emocionais dos outros, são incapazes de fazer sentido de seu comportamento através da atribuição de estados mentais (Frith & Happé, 1999: 7-8).
Em suma, uma
falha no mecanismo subjacente à computação de estados mentais
prejudicaria tanto o autoconhecimento como o conhecimento de outras
mentes, o que acarretaria prejuízos nas áreas social e da comunicação.
No entanto, autistas de alto-funcionamento possuem a habilidade de
refletir sobre seus próprios estados mentais e os dos outros, mas
parecem fazê-lo através de um lento e difícil processo de aprendizagem;
através de um caminho longo e tortuoso (Frith & Happé, 1999).
Por outro lado,
a visão construtivista defende que os comportamentos do desenvolvimento
infantil só podem ser desenvolvidos através das interações sociais
compartilhadas pelas pessoas. É por isso que Hobson (2002) defende que o
prejuízo primário do autismo se encontra no engajamento social com os
outros, acarretando vários prejuízos secundários, que são aqueles
descritos nas áreas de comunicação e comportamento encontrados no
DSM-IV-TR (2002). É devido também à gravidade dos prejuízos sociais que
Wing (1988) distingue três tipos de autistas: o isolado, ou seja, aquele
que evita o contato social; o passivo, considerado aquele que aceita
contato social, mas não o inicia; e o bizarro, que interage socialmente
de forma peculiar. Isto demonstra que, mesmo que de modos distintos, as
interações sociais dos autistas são qualitativamente prejudicadas, o que
acarreta graves consequências para o seu desenvolvimento, destacando-se
aqui as falhas no aparecimento da autoconsciência.
Em se tratando
desta questão, como a abordagem construtivista enfatiza a construção da
autoconsciência no desenvolvimento infantil a partir das interações
sociais e da linguagem, é possível supor que todo o processo que culmina
com o aparecimento da mesma se encontra prejudicado nas crianças
autistas. Como os prejuízos nas interações sociais são identificados
nestas crianças antes dos dois anos (Adrien et al., 1993; Maestro et
al., 2005), é provável que a formação do self emergente e nuclear ocorra de modo diferente nelas, acarretando, consequentemente, falhas na formação do self subjetivo e do self verbal.
A origem destas
falhas pode estar naquilo que Hobson (2002) defende como o principal
prejuízo encontrado em crianças autistas, que são as falhas na conexão
afetiva inata com a sua mãe. Hobson e colaboradores (2006) afirmam que
esta falta de conexão afetiva é explicada pelo processo de
identificação. Para os autores, o transtorno autista decorre
fundamentalmente de falhas no processo de identificação entre os
indivíduos. Desta forma, bebês que mais tarde são diagnosticados
autistas não respondem às ações e comportamentos dos outros e nem são
movidos e afetados pelos sentimentos dos mesmos. Com isso, não conseguem
responder e interagir adequadamente às trocas afetivas indispensáveis
para o seu desenvolvimento.
Esta teoria
encontra respaldo nos prejuízos detectados precocemente em autistas, nos
seus dois primeiros anos de vida, antes de receberem o diagnóstico
(Adrien et al., 1993; Maestro et al., 2005). Para Hobson (2002), tais
prejuízos, como os distúrbios no contato ocular (Adrien et al., 1993;
Trevarthen & Daniel, 2005), déficit na atenção às pessoas (Maestro
et al., 2005; Trevarthen & Daniel, 2005), ausência de sorriso social
(Adrien et al., 1993; Trevarthen & Daniel, 2005), prejuízos nas
expressões faciais, gestos apropriados e posturas expressivas (Adrien et
al., 1993) e falta de imitação (Trevarthen & Daniel, 2005), impedem
que o bebê participe de experiências de compartilhamento mútuo com as
pessoas e se envolva em trocas afetivas recíprocas com elas.
Do mesmo
modo, seguindo o pensamento de Stern (1992) a respeito do
desenvolvimento infantil típico, é possível inferir que os prejuízos no
aparecimento destes comportamentos levem a dificuldades severas destas
crianças na capacidade de autoagência, como, por exemplo, seus déficits
na capacidade de atenção e reciprocidade social, gerando prejuízos na
compreensão de suas próprias ações (Maestro et al., 2005; Trevarthen
& Daniel, 2005) e na autoafetividade, devido aos prejuízos no
contato ocular e nas expressões faciais, gestos apropriados e posturas
expressivas (Adrien et al., 1993; Trevarthen & Daniel, 2005). Além
disso, devido a problemas sensoriais que podem exibir, provavelmente
elas apresentam também dificuldades na autocoerência, visto que as
variações no modo de receber os estímulos sensoriais podem ser
prejudiciais para o reconhecimento de um corpo integrado (Baranek et
al., 2006), causando, consequentemente, distúrbios na sua auto-história.
Deste modo, estas crianças apresentariam prejuízos severos no desenvolvimento de seu self emergente
e nuclear. Consequentemente, as crianças autistas passariam a
apresentar dificuldades em se envolver em situações que lhes permitam
compartilhar os objetos e os eventos do mundo com as pessoas,
comportamento que evidencia o aparecimento do self subjetivo.
Ao não realizarem isso, elas se tornariam incapazes de se orientar em
um mundo repleto de significados compartilháveis onde as pessoas se
experimentam como seres diferentes, com distintos modos de sentir, ser e
estar em um contexto que é sempre compartilhado com o outro. Dito de
outro modo, elas também não conseguiriam desenvolver o seu self subjetivo,
cujas falhas ficam evidenciadas pelos prejuízos nos comportamentos de
atenção compartilhada ou interatencionalidade (Maestro et al., 2005;
Tomasello, 2003) e também naqueles relativos a intersubjetividade e
sintonia afetiva (Greenspan & Wider, 2006; Hobson, 2002). Deste
modo, o seu self verbal
apresentaria déficits significativos, o que é plenamente justificável
através dos danos que estas crianças apresentam no desenvolvimento da
fala (Baron-Cohen, Allen & Gillberg, 1992; Hobson, 2002).
Seguindo este
raciocínio, com as dificuldades no relacionar-se afetivamente com o
outro, as crianças autistas apresentam prejuízos severos no
desenvolvimento do seu self e dos selves dos
outros. Com isso, elas não apresentam o desenvolvimento da
autoconsciência, ou seja, um pensamento reflexivo sobre si mesmas e a
capacidade para entender que o seu próprio self é
objeto de avaliação e análise tanto para os outros quanto para si
mesmas. E evidências significativas dão respaldo a esta visão, como as
dificuldades de adolescentes autistas no uso dos pronomes pessoais (Lee
& Hobson, 1994), prejuízos na expressão e descrição de emoções
sociais (Hobson, 2002; Hobson et al., 2006) e prejuízos no aparecimento
do jogo simbólico (Baron-Cohen et al., 1992; Williams, Reddy &
Costall, 2001), sendo este considerado um dos principais marcadores para
identificar um possível diagnóstico de autismo para crianças com 18
meses de idade (Baron-Cohen et al., 1992).
Por outro lado,
contrariando o pensamento anterior e assemelhando-se à Teoria da Mente,
Hobson (2002) reconhece que autistas podem apresentar algumas formas de
identidade e reconhecimento de self, como serem capazes de remover rouge de
sua testa ao se olharem no espelho ou quando se reconhecem em
fotografias. Além disso, alguns autistas podem utilizar e compreender o
uso dos pronomes pessoais em algumas situações restritas (Lee &
Hobson, 1994), podem apresentar algumas formas de emoções sociais, como
culpa ou embaraço quando não atingem um objetivo específico ou não
executam uma atividade com presteza (Hobson et al., 2006), e são capazes
de desenvolver alguns tipos de jogos simbólicos que envolvam
representações diretas da realidade, como, por exemplo, colocar um copo
de brinquedo na boca (Williams et al., 2001).
Para Hobson e
colaboradores (2006), a explicação para isto se encontra nas linhas
dissociáveis do desenvolvimento das crianças autistas. Dito de outra
forma, os autores acreditam que o desenvolvimento do autista apresenta
dissociações, ou seja, alguns comportamentos podem ser desenvolvidos sem
que haja interferência do engajamento com o outro, como, por exemplo, a
capacidade que o autista apresenta de decorar falas de personagens na
tv, enquanto outros comportamentos, como a capacidade de responder ao
sorriso de alguém, dependem inexoravelmente do contato afetivo com o
outro e por isso autistas não os desenvolvem.
Assim, os autores defendem
que os autistas são capazes de se envolver em relações que estabelecem
com o mundo não social, chamadas por eles de I-It (eu-isto), enquanto as I-Thou (eu-tu),
consideradas as relações sociais, se encontram prejudicadas. Devido a
isto, os autores afirmam que autistas são capazes de realizar imitações
de objetivos diretos, mas não fazem imitações onde precisam se
identificar com os sentimentos de outra pessoa para assumir, então, as
suas orientações físicas. Também são capazes de apreender as intenções
dos outros quando agem com objetivos diretos, mas não apreendem as
intenções dos outros de modo a responder às atitudes afetivas deles.
Além disso, são capazes de responder a algumas reações emocionais dos
outros, mas não são afetados pelas expressões dos seus sentimentos. Por
fim, há ainda um contraste na compreensão de estados mentais dos
autistas. Segundo os autores, eles podem apreender alguns estados
mentais das pessoas não porque se identificam com elas, mas porque
recordam os settings onde os sentimentos das pessoas foram expressos e os aplicam apenas nestas circunstâncias.
Seguindo este
pensamento, os autistas apresentariam a capacidade de desenvolver níveis
menos complexos dos comportamentos encontrados no desenvolvimento
infantil típico, níveis estes que não dependem das interações para serem
desenvolvidos. O mesmo é válido considerando-se o aparecimento da
autoconsciência, que, mesmo que não se desenvolva plenamente, encontra
expressões mais simples. É por isso que eles usam os pronomes pessoais
apenas em situações restritas em que decoram onde estes pronomes foram
empregados, utilizando-os apenas em situações semelhantes; apresentam
emoções sociais não porque se percebem como alvo de observação e
julgamento do outro e assimilem este julgamento para se autoavaliarem,
mas porque se autoavaliam como vencedores ou fracassados ao
desempenharem ou não determinada tarefa com eficácia; e são capazes de
jogos simbólicos restritos apenas à sua percepção imediata e não aos
significados que podem ser criados a partir do compartilhar com os
outros.
Disto decorre
que, ainda que diferentemente de crianças com desenvolvimento típico, as
autistas conseguem se envolver em determinados tipos de relações. Estas
relações permitem-lhes desenvolver algum tipo de distinção entre o seu self e
o do outro, embora a autoconsciência reflexiva pareça não se
desenvolver. Portanto, o desafio é fazer com que estas crianças se
engajem em interações afetivas recíprocas que possam propiciar a
emergência de sua autorreflexividade.
Concluindo,
segundo a visão construtivista, a identificação parece ser o precursor
para o desenvolvimento das relações intersubjetivas entre o
recém-nascido e sua mãe. Contudo, ela pode assumir diferentes níveis,
passando por identificações iniciais com as expressões corporais e
movimentos dos outros até que se chegue a identificações mais
subjetivas, nas quais a criança passa a se identificar com os
sentimentos, ações e perspectivas dos outros. Neste processo, tal como
salientam Hobson e colaboradores (2006), o desenvolvimento do self apresenta
também níveis, assumindo formas iniciais de identidade e
autoconhecimento do próprio corpo, através da constituição e
diferenciação entre o eu emergente e nuclear e outros, já apresentadas
pelo pensamento de Stern (1992), até alcançar níveis mais reflexivos,
tais como o self subjetivo, o self verbal e a autoconsciência.
Em se tratando
do transtorno autístico, falhas na identificação acarretam prejuízos
severos nas interações sociais e na capacidade de os autistas se
envolverem nos significados compartilhados pelo seu grupo social através
da linguagem, causando um desvio no desenvolvimento dos portadores do
transtorno. Este desvio faz com que alguns níveis de desenvolvimento do self possam
ser adquiridos, ainda que com limitações, mas impossibilita a
emergência da autoconsciência reflexiva. Se isto for verdadeiro, a chave
para um melhor atendimento a indivíduos com o transtorno talvez esteja
na questão da identificação. Fazê-los se envolver e se engajar em trocas
afetivas, portanto, parece ser o ponto crucial para os programas de
intervenção com sujeitos autistas (Fiore-Correia, 2005).
CONCLUSÃO
O propósito do
presente ensaio foi refletir acerca das falhas na emergência da
autoconsciência no autismo. Para tanto, vimos os dois enfoques
principais – cognitivista e construtivista – e procuramos, para ambos,
fundamentos nas áreas da filosofia e da neurociência. Por adotarmos uma
perspectiva construtivista, procuramos analisar mais especificamente os
processos envolvidos na emergência da autoconsciência no desenvolvimento
típico e os problemas apresentados no âmbito do autismo.
No nosso
entender, o problema com a perspectiva cognitivista não é, pura e
simplesmente, sua defesa do inatismo, já que qualquer perspectiva, mesmo
a mais social, deve admitir uma dimensão inata para o desenvolvimento
humano. O problema consiste em esta perspectiva adotar uma posição
determinista e não considerar a importância de se conceber o
desenvolvimento como envolvendo uma articulação entre o inato e o
social. Em outras palavras, uma perspectiva construtivista também requer
a admissão de uma base inata, observada na capacidade de o bebê humano
ser sensível e responsivo às emoções de outro ser humano, assim como de
ele próprio ser emocionalmente expressivo. Mas apenas isso não é
suficiente para dar conta de qualquer ponto do desenvolvimento.
É
preciso também considerar que diferentes formas de interação social
poderão levar a diferentes resultados de desenvolvimento mesmo que a
base inata tenha sido a mesma.
Em suma, uma
perspectiva construtivista concebe o desenvolvimento humano como uma
construção social a partir de uma base inata. A lógica, no que se refere
ao caso do autismo, consiste em argumentar que, dados certos prejuízos
nas capacidades inatas, o bebê se torna incapaz de se engajar em
interações sociais que irão promover o seu desenvolvimento. Daí o desvio
em seu desenvolvimento geral e, mais especificamente, na sua capacidade
de autoconsciência.
Mas vejamos,
então, o que entendemos por autoconsciência, no contexto deste ensaio.
Parece haver um consenso, entre diferentes autores vistos, de que a
autoconsciência humana envolve uma capacidade de autorreflexividade.
Hobson e colaboradores (2006) concebem a autoconsciência como a
capacidade de autorreflexividade; uma habilidade exclusiva da espécie
humana de refletir acerca de seus próprios sentimentos e ações. Damásio
(2000) define a consciência reflexiva como a capacidade de pensar sobre
suas próprias experiências conscientes por si mesmas, sendo ela o ápice
da hierarquia, e exclusivamente humana.
E a Teoria da Mente também se
refere à capacidade de autorreflexividade quando trata da
autoconsciência.
Dado esse
consenso, vejamos em que medida a filosofia e as neurociências podem
oferecer fundamentos para o argumento construtivista das falhas na
emergência da autoconsciência no autismo. No campo da filosofia, uma
perspectiva construtivista/pragmática, tal como a de Wittgenstein
(1958), não concebe a autoconsciência como uma capacidade inata
envolvendo um conhecimento direto de nosso mundo interior, nem nossas
verbalizações na primeira pessoa como descrições de eventos internos,
como advoga a visão cartesiana. A autoconsciência envolve, na verdade,
um jogo de linguagem adquirido através de práticas sociais.
No campo das neurociências, Damásio (1995; 2000) propõe uma teoria de construção do self segundo a qual a base das capacidades de consciência e self deve
ser encontrada na integração de emoções primárias e secundárias. E
segundo a qual a plena autoconsciência humana se dá na e pela linguagem.
Neste caso, uma falha na integração dos diferentes tipos de emoções e
uma falha no desenvolvimento da linguagem podem resultar em uma
autoconsciência precária, como no caso do autismo. Mas isto não
significa que não haja outras formas de consciência e self (Winograd, Sollero-de-Campos & Drummond, 2008). Damásio (2000) se refere a um self central, anterior ao self autobiográfico, distribuído por todo o corpo e envolvendo a experiência imediata. Ele também se refere a um self autobiográfico pré-linguístico, além de uma autoconsciência não-verbal. Isto é, ele concebe oself como uma estruturação em progressivo afastamento das restrições biológicas desde os estados corporais doself central até o self autobiográfico
plenamente linguístico, o que possibilita a existência de processos de
desenvolvimento singulares e atípicos, dados os "diferentes graus de
vinculação à natureza e à criação [...] doself central e do self autobiográfico" (Damásio, 2000: 445-446).
Como visto,
segundo uma perspectiva construtivista do desenvolvimento típico, a
autoconsciência se desenvolve a partir de um processo que depende,
inicialmente, das trocas afetivas entre o bebê e sua mãe. Primeiro em um
nível físico, até poder alcançar um nível reflexivo linguístico. Os
processos interacionais de base afetiva possibilitam o aparecimento
inicial de um self corporal e, posteriormente, de um self subjetivo
e verbal, dando condições para o surgimento da autoconsciência humana
plena. De acordo com Stern (1992), nos primeiros sete meses de vida os
contornos que separam o self do bebê de outros selves estão
relacionados aos seus aspectos corporais.
A partir desse momento, esses
contornos passam a abarcar experiências ligadas a desejos, necessidades
e intenções das pessoas, constituindo a distinção entre um self e outros selves subjetivos e, posteriormente, o self verbal.
Para Hobson (2002), a partir dos nove meses, a identificação da criança
com os comportamentos do adulto relacionados a objetos e eventos no
mundo permite que ela passe a considerar que os outros apresentam
perspectivas e estados mentais próprios diferentes dos dela. É quando
surge uma nova consciência de si e dos outros no desenvolvimento
infantil típico. Contudo, a criança ainda não é capaz de refletir sobre
um comportamento ou sobre como se sentiu em determinada situação. Ela
ainda não possui a autoconsciência, que só começa a aparecer por volta
do segundo ano de vida. Em suma, no desenvolvimento típico a
autoconsciência se desenvolve a partir de um nível pré-reflexivo no qual
as experiências corporais de integração permitem um desenvolvimento
incipiente de self até um nível reflexivo através de formas mais complexas de percepção do self permitindo a autoconsciência.
No caso do
autismo, devido a falhas na identificação afetiva, todo o processo de
interações sociais que culmina com o aparecimento da autoconsciência
está prejudicado. Consequentemente, ela também o estará. Foram
identificados, em crianças autistas, vários prejuízos na interação
social antes dos dois anos de idade que acarretariam prejuízos no
desenvolvimento dos self emergente, self nuclear, self subjetivo e self verbal
e, desta forma, na autoconsciência, sendo a dificuldade no uso de
pronomes pessoais uma das evidências mais claras. Porém alguns autistas
podem apresentar algumas formas de identidade e reconhecimento de self,
assim como algumas formas de emoções sociais, e utilizar e compreender o
uso de pronomes pessoais. Podem também realizar imitações, apreender as
intenções e alguns estados mentais dos outros, mas sempre em situações
imediatas. Contudo, essas crianças autistas desenvolvem essas
habilidades de forma embrionária e por outros meios que não a
identificação afetiva, evidenciando dissociações em seu desenvolvimento.
Em suma, alguns autistas podem chegar a apresentar expressões mais
simples de autoconsciência, desenvolvidas por meio de outros mecanismos,
mas não à autoconsciência reflexiva.
Embora o ensaio
tenha sido uma tentativa inicial de levantar apontamentos relevantes
relativos à importância da autoconsciência para o desenvolvimento humano
e como isto pode se tornar imprescindível para o tratamento de sujeitos
autistas, novos estudos são imprescindíveis para uma melhor compreensão
do fenômeno no desenvolvimento humano típico e de pacientes acometidos
com transtornos graves como o autismo.
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