José Salomão Schwartzman é neuropediatra. Formado na Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo, especializou-se em Neurologia Infantil no Hospital for Sick Children, em Londres, e é professor titular de pós-graduação em Distúrbios do Desenvolvimento na Universidade Presbiteriana Mackenzie.
Há crianças que parece não aprenderem a reconhecer os códigos que regem a comunicação humana. Alheias à presença dos outros, encerradas num universo próprio e inatingível para todos que as cercam, apresentam padrões restritos e repetitivos de comportamento. Essa tríade de sintomas – dificuldade de interação social, de comunicação e repetição de comportamentos padronizados – caracteriza um transtorno do desenvolvimento conhecido como autismo.
O médico austríaco Leo Kanner usou essa palavra em 1943 para descrever uma série de sintomas que observava em alguns de seus pacientes. Com o passar dos anos, porém, ficou provado que essas crianças apresentavam apenas uma das manifestações de autismo. Na verdade, as dificuldades do autista variam em grau e intensidade e o comprometimento pode ser muito grave e estar associado à deficiência mental, ou tão leve que o portador do transtorno consegue levar uma vida próxima do normal.
Apesar de autismo não ter cura, quanto antes for diagnosticado, melhor. Crianças convenientemente tratadas podem desenvolver habilidades fundamentais para sua reabilitação. O problema é que, muitas vezes, os pais se recusam a admitir que o filho tem algumas características que requerem atenção especial e não procuram ajuda.
No Brasil, existe a AMA – Associação Amigos do Autista – (www.ama.org.br) que presta assistência a autistas.
CONCEITO E CLASSIFICAÇÃO
Drauzio – Você poderia caracterizar o que se entende por autismo?
José Salomão Schwartzman – Na verdade, o que se chama de autismo nada mais é do que um tipo de comportamento que se caracteriza por três aspectos fundamentais. Primeiro: são crianças que parecem não tomar consciência da presença do outro como pessoa. Segundo: apresentam muita dificuldade de comunicação. Não é que não falem, não conseguem estabelecer um canal de comunicação eficiente. Terceiro: têm um padrão de comportamento muito restrito e repetitivo. Atualmente, qualquer indivíduo que apresente esses sintomas, em maior ou menor grau, é caracterizado como autista.
Como se vê, o conceito de autismo é muito amplo. Costumo compará-lo com o de deficiência mental, outro conjunto de sinais e sintomas presentes numa série imensa de pessoas.
Drauzio – Como vocês classificam o autismo?
José Salomão Schwartzman (foto) – Atualmente, costuma-se dizer que não há autismo. Existe um espectro de desordens autísticas, em que aparecem as mesmas dificuldades em graus de comprometimento variáveis. Há o indivíduo portador das características citadas em grande proporção e com deficiência mental grave; o grupo com o tipo de autismo descrito pelo médico austríaco Leo Kanner que tem comprometimento moderado e os indivíduos com a Síndrome de Asperger (Hans Asperger foi o médico que a descreveu), que são autistas com linguagem e intelecto preservados.
Drauzio – Você poderia dar um exemplo de autista em cada grupo?
José Salomão Schwartzman – Exemplo do primeiro grupo é o autista grave, aquele que aparece em propagandas das instituições que cuidam dessas pessoas. São crianças isoladas, que não falam e repetem movimentos estereotipados permanentemente, ou ficam girando em torno de si mesmas. Como não são sensíveis à comunicação, não respondem quando se fala com elas, não interagem com o outro e têm, em geral, deficiência mental importante.
Ao segundo grupo pertencem os autistas que chamamos de clássicos. Esses falam, mas não se comunicam. São capazes de repetir fora do contexto uma frase inteira que ouviram num programa de televisão na noite anterior. No entanto, se lhe perguntarmos quantos anos têm ou qual é o seu nome, não respondem. Isso mostra que ouvem e podem falar, mas não usam a fala com ferramenta de comunicação. Esses têm também dificuldade de compreensão. Embora possam entender enunciados simples, apreendem apenas o sentido literal das palavras. Não compreendem as metáforas nem o duplo sentido. Se você disser “muito bem”, não são capazes de perceber que, na língua portuguesa, essa expressão pode significar tanto “muito bem” quanto “muito mal”. Autistas clássicos são voltados para si mesmos e têm ligação muito pobre com o ambiente. Não olham nos olhos dos outros, não entendem pistas sociais.
No terceiro grupo, estão os portadores da Síndrome de Asperger, que apresentam as mesmas dificuldades dos outros, mas numa medida bem reduzida. São verbais e inteligentes. Tão inteligentes que chegam a ser confundidos com gênios, porque são imbatíveis nas áreas do conhecimento em que se especializam. Vi na televisão uma criança portadora dessa síndrome que costuma ser apresentada como uma das maiores autoridades mundiais em animais pré-históricos. O garoto sabe tudo sobre dinossauros. De onde vieram, o tipo de DNA, o que comiam, onde viveram. Entretanto, se lhe fizermos uma pergunta simples – Quantas pessoas vivem na sua casa? -, ele se comporta como se estivéssemos falando grego.
Estabelecer a diferença entre superdotados e portadores da síndrome de Asperger em crianças pequenas é quase impossível. Há um menino em Manaus que sabe de cor o mapa cartográfico da cidade. Desenha todas as ruas, coloca o nome das lojas e o número dos telefones, mas não consegue ser alfabetizado na escola.
Drauzio – Não dá para imaginar como uma pessoa é capaz de decorar o mapa cartográfico de uma cidade ou até mesmo uma lista telefônica inteira e não é capaz de interpretar conhecimentos mínimos como seu nome e o número de pessoas que moram em sua casa.
José Salomão Schwartzman – Eu acredito que a pessoa normal não enxerga com os olhos. Registra a imagem nos olhos, mas é seu cérebro que processa a informação. Nos autistas com síndrome de Asperger, a visão é fotográfica. Eles veem o que a retina capta. Existe um rapaz na Inglaterra, com cerca de trinta anos, que é considerado um dos maiores desenhistas contemporâneos. O neurologista inglês Oliver Sacks, autor de vários livros a respeito de autismo, levou-o a passear pelo mundo. Depois que visita uma cidade, ele é capaz de desenhar os edifícios respeitando as proporções e reproduzindo todos os detalhes com precisão. Esse moço faz uma coisa impossível para qualquer um de nós. Se você e eu descrevermos o mesmo objeto, certamente iremos descrever duas coisas diferentes, porque cada um de nós o enxergou a seu modo. Ele não. Reproduz o prédio exatamente como é.
CAUSAS
Drauzio – Você não acha estranho existir uma patologia com classificação de espectro tão amplo, que abrange pessoas com incapacidade total de comunicação e outras com sinais de genialidade?
José Salomão Schwartzman – Esse é o problema. Quando Kanner descreveu o autismo em 1943, achou que estava descrevendo uma doença específica que não fugia do quadro clássico que os onze pacientes estudados apresentavam. O fato é que, com o passar do tempo, fomos vendo que não era uma doença específica, nem ocorria por culpa da mãe, porque era essa a visão que se tinha naquela época e, por incrível que pareça, persiste até hoje em alguns lugares.
Em outras palavras: por conta da maternagem inadequada, a criança normal tornava-se autista. Tanto era assim que ainda há gente dizendo que o autismo é causado por um ambiente problemático e propõe terapias psicanalíticas como tratamento.
Entretanto, à medida que se foi conhecendo melhor essa patologia, o conceito de autismo ampliou-se de tal forma que cabe uma comparação com a deficiência mental, primeiramente descrita como um quadro clássico, típico de alguns pacientes, e depois como problema que compreende uma categoria enorme de doenças.
Na verdade, não é exagero dizer que autismo não é uma doença; é um capítulo da neuropediatria.
Drauzio – Existem causas para o autismo?
José Salomão Schwartzman – Nós nunca vamos conhecer a causa do autismo, porque a cada momento estamos descobrindo novas possibilidades. Eu poderia elencar 20, 30, 40 condições diferentes que podem cursar com autismo. A síndrome de Down, a síndrome do X-Frágil e uma série de outras doenças podem cursar o autismo. Da mesma forma, a síndrome fetal alcoólica provocada pela ingestão de álcool durante a gravidez é uma das causas frequentes de deficiência mental e autismo.
DIAGNÓSTICO
Drauzio – Crianças autistas nascem, choram, alimentam-se normalmente. Em que fase da vida aparecem as primeiras manifestações da doença?
José Salomão Schwartzman – Depende muito da gravidade do comprometimento. Vamos pegar o exemplo do autista clássico. Às vezes, a mãe conta que, desde que saiu da maternidade, esse filho é diferente dos irmãos. Não olha para ela, não quer pegar o peito, não se aninha no colo. No entanto, frequentemente, por não conhecer a doença, ela acha que esse é o jeito, é o temperamento daquela criança.
Existem filmes provan
do que uma criança normal com cinco horas de vida já é capaz de imitar uma expressão fisionômica. Se estiver bem alimentada e num ambiente tranquilo e mostrarmos a língua, ela nos mostrará a língua também. A criança autista nunca faria isso. Perceber essa diferença, porém, depende muito dos olhos de quem está observando. Hoje, se fala muito sobre diagnóstico precoce de autismo. Ami Klin, psiquiatra e neurocientista brasileiro que estuda muito o problema e dirige o centro de pesquisa sobre autismo da Universidade de Yale, defende o diagnóstico em bebês. É obvio que é impossível fechar o diagnóstico de autismo numa criança de seis, oito meses. Não se fecha, mas levanta-se a suspeita, o que permite adotar uma conduta terapêutica até certo ponto corretiva.
Drauzio – Sua grande experiência clínica no acompanhamento desses pacientes mostra que os pais começam a perceber o problema quando o filho tem que idade?
José Salomão Schwartzman – Com três anos. Essa é a fase em que já esperaram tempo suficiente para a criança falar, para comunicar-se de alguma forma. Entretanto, quando se levanta a história do paciente, em todos os casos, surgem indícios importantes de que já havia algum distúrbio no desenvolvimento dessa criança que não foi corretamente considerado.
Se os pais dos bastante afetados procuram auxílio quando o filho tem entre dois e quatro anos, autistas poucos afetados podem descobrir que têm a doença depois de adultos. Tenho casos de pais que souberam ser portadores da síndrome de Asperger, que é o autismo de bom rendimento, quando o diagnóstico foi feito no filho.
PREVALÊNCIA
Drauzio – Existe concentração de casos de autismo em certas famílias?
José Salomão Schwartzman – Existe um fator genético indiscutível. Nos casais que já tiveram filhos autistas, a probabilidade de ter mais um é de cerca de 2%. Parece pouco, mas significa um risco de 50 a 100 vezes maior do que na população em geral.
Drauzio – Qual é a prevalência do autismo na população?
José Salomão Schwartzman – Admite-se que a prevalência não só do autismo clássico, mas de todas as condições do espectro autista seja de um para mil. Na Califórnia (EUA), os últimos relatos falam de um caso para cada 150 crianças, o que não é possível. Talvez, o conceito deles seja tão amplo, que daqui a pouco todos nós seremos considerados um pouco autistas.
Drauzio – Qual é a vantagem do diagnóstico precoce de uma doença que pode ter uma evolução que vai desde o retardo mental e a impossibilidade de aprender até a genialidade se o conhecimento for dirigido?
José Salomão Schwartzman – Se tenho uma criança que necessita de mais estímulo para tentar estabelecer uma relação com a mãe, com o pai, com os irmãos, o aconselhamento familiar precoce permite ensinar técnicas que tentem facilitar essa comunicação. Além disso, existem medicamentos que podem ser indicados em determinadas situações.
Não há cura para o autismo, mas acontece que algumas pessoas têm melhora tão grande com o tratamento que podem levar vida independente. Tenho autistas adultos, casados, com filhos, que são excepcionalmente bem dotados em algumas áreas do conhecimento e tomaram consciência da própria doença aos 40 anos. Esses tiveram um percurso feliz, porque o distúrbio evoluiu de forma adequada e, em grande medida, tiveram famílias e escolas que souberam trabalhar suas dificuldades.
REAÇÃO DOS PAIS
Drauzio – Como reagem os pais ao saber que têm um filho com autismo?
José Salomão Schwartzman – Minha sensação é que das condições que cursam com os distúrbios de desenvolvimento, o autismo talvez seja a mais difícil de conviver. Como é possível ter uma relação de afeto com alguém que não corresponde a nenhuma tentativa de aproximação, que não se pode abraçar nem dar um beijo nem ensinar a falar tchau?
Na família de um autista, não é só a criança que está doente. A família inteira fica seriamente comprometida. Por isso, quando observavam a dinâmica familiar alterada, os autores antigos chegavam à conclusão de que pais tão ruins assim, que não se comunicavam com os filhos, desencadeavam esse tipo de comprometimento na criança.
Drauzio – Eles consideravam a consequência, como causa.
José Salomão Schwartzman – Faziam isso, quando, na verdade, é a criança doente que, desde o começo, não permite uma relação parental adequada. Entretanto, tudo vai depender muito de quem são os pais e de como reagem. Há os que, apesar da dificuldade de entrar em contato com a criança, tentam identificar o que ela tem de anormal. Entretanto, é frequente encontrar famílias que não querem ver a dificuldade do filho. Muitas se negam a perceber que o filho adolescente, durante a vida toda, teve um comportamento fora do habitual e acabam inventando explicações para não admitir que ele é portador de uma condição grave como o autismo. Isso atrasa demais a possibilidade de ajudar a criança.
TRATAMENTO
Drauzio – Os autistas devem frequentar escolas comuns?
José Salomão Schwartzman – Depende do grau de comprometimento. Atualmente, no Brasil, a política é tentar a inclusão dos indivíduos com deficiência em escolas regulares. Isso vale para algumas pessoas e para algumas escolas.
Pessoalmente, não gosto de discutir a inclusão como algo filosófico ou determinado pelo MEC. Acho que se deve analisar caso a caso e levar em conta, antes de mais nada, o local onde estarão melhor os deficientes. Tenho dois autistas adolescentes cursando a USP. Não têm vida social intensa, mas estão vivendo de forma bastante adequada. Se você conversar com eles, perceberá algo de estranho em seu comportamento, mas talvez a maneira de agir desses estudantes não se distancie muito da de vários conhecidos esquisitos que temos.
Indivíduos como eles podem e devem cursar escolas regulares. A questão é quando a criança não fala, não se comunica e apresenta movimentos estereotipados. Colocada dentro de uma classe regular, não só será excluída do grupo, como deixará de beneficiar-se com a aplicação de técnicas pedagógicas que dão certo com os autistas. Por exemplo, a técnica Teacch que é muito usada nos Estados Unidos e baseia-se na modificação do comportamento.
Na verdade, ninguém pode dizer que o melhor tratamento para crianças autistas é este ou aquele. Cada pessoa exige uma abordagem individualizada de acordo com as características de suas dificuldades.
Drauzio – Existiria uma linha mestra a ser seguida no tratamento dos autistas?
José Salomão Schwartzman – Não existe. Se a criança apresenta prejuízo da comunicação, o atendimento tem de ser precoce e é preciso utilizar todos os métodos disponíveis para estabelecer algum tipo de comunicação. Se não conseguir fazê-lo verbalmente, que seja por qualquer outro modo. Há quem ensine a linguagem de sinais para os autistas. Outros usam o computador. O importante é convencer a família de que o fundamental é estabelecer uma possibilidade de comunicação entre o autista e o mundo, não importa qual seja.
Os prejuízos de linguagem dos autistas verbais, sua dificuldade de entender as metáforas e o duplo sentido, podem ser superados pela cognição. Um dos rapazes que estão estudando na USP e foram aprovados no vestibular, é ótimo aluno e provavelmente vai ser ótimo professor da disciplina que escolheu. Outro dia, ele me falou: “Salomão, ter síndrome de Asperger é uma coisa complicada”, e pediu para mãe me contar o que lhe havia acontecido. Desde que ele era pequenininho, antes de sair para o trabalho, a mãe deixava um ovo cozido e descascado para o filho comer no café da manhã. Um dia, porém, ela não seguiu esse ritual completamente e, quando voltou para casa, encontrou o rapaz, que deveria estar na faculdade, sentado à mesa, olhando para o ovo. “Você perdeu hora?”, perguntou. “Não, mãe, você esqueceu de descascar o ovo”. Como nunca tinha visto alguém descascar um ovo, foi incapaz de fazê-lo.
De fato, fica difícil de entender como um rapaz que passou no vestibular, é excelente aluno, inteligente, é incapaz de enfrentar uma situação nova tão simples quanto descascar um ovo.
Drauzio – Não só não descascou o ovo, como ficou paralisado…
José Salomão Schwartzman – Absolutamente paralisado. E ele conta outras experiências iguais. Um dia, a mãe lhe pediu para pegar um objeto no porta-malas do carro. Como demorasse muito para voltar, foram atrás dele para ver o que estava acontecendo. Encontraram o rapaz no estacionamento do restaurante, com a chave do carro na mão, olhando para o porta-malas sem saber como abrir, pois nunca ninguém lhe tinha ensinado a enfiar a chave na fechadura. Isso prova a necessidade e importância de adotar atitudes pedagógicas. É preciso ensinar esses indivíduos a fazerem determinadas coisas que presumiríamos serem capazes de aprender sozinhos.
Drauzio – É visível o progresso dessas crianças quando tratá-las adequadamente?
José Salomão Schwartzman – Em algumas, sim. O problema é que quanto maior a deficiência mental, menor a possibilidade de ganhos significativos. No entanto, como nas crianças pequenas os dados para diagnóstico não são claros, empenho-me no tratamento, embora as respostas possam ser muito diferentes. Há casos que evoluem tão bem, que se usa a expressão “saiu do quadro autístico”, que não é adequada. Autismo é um distúrbio incurável. Se houve reversão do quadro, a pessoa não era autista.
Tenho muitos pacientes com autismo que sararam, mas nunca vou apresentá-los num congresso, porque foram classificados como autistas por erro de diagnóstico. Por isso, fechar o diagnóstico antes do cinco anos é complicado. O médico pode levantar a hipótese, mas o consenso é que o diagnóstico de certeza só seja feito por volta dos quatro anos e meio de idade.
2ª parte da entrevista
CARACTERÍSTICAS DO AUTISMO – INTERAÇÃO PESSOAL
O que chama mais atenção na criança autista é a dificuldade de interação pessoal. O desejo e a forma de interagir com o outro são inatos na espécie humana. Aparentemente, um equipamento biológico faz com que as pessoas despertem a curiosidade e o interesse do bebê. Logo nas primeiras horas de vida, diante de outras figuras, ele já demonstra preferência por um rosto. Esse elo, que falta ou está profundamente perturbado no autista, determina uma característica que vai acompanhá-lo a vida toda.
Embora autismo não tenha cura, o quadro se modifica à medida que o indivíduo fica mais velho. Modifica-se, primeiro, em função de um processo maturativo decorrente de suas experiências com o mundo: como se relaciona com os outros, como é tratado e, talvez o mais importante, se existe algum retardo mental associado.
Na verdade, 70% dos autistas apresentam algum grau de retardo mental, o que caracteriza o quadro de forma um pouco diferente. O seguimento a longo prazo desses indivíduos, enfocando especialmente as dificuldades de interação social, mostra que, no autista não portador de retardo mental ou, pelo menos, que não tem retardo mental pronunciado, embora a dificuldade de relacionamento social persista por toda a vida, pode ser atenuada.
Drauzio – Essa dificuldade de interação manifesta-se com os familiares ou só com as pessoas estranhas?
José Salomão Schwartzman – Manifesta-se com todo o mundo. Como regra geral, a dificuldade de interação se dá com a mãe, o pai, os irmãos e com todo o mundo exterior.
Drauzio – O grau de dificuldade é o mesmo com a mãe, por exemplo, e com as pessoas estranhas?
José Salomão Schwartzman – Não é. A relação é um pouco mais próxima com as pessoas que lhe são familiares. As mães contam, porém, especialmente quando já tiveram outros filhos, que desde o começo aquele bebê aninhou-se de modo diferente em seu colo e não a olhava nos olhos enquanto estava mamando.
AUTISMO NA ADOLESCÊNCIA
Drauzio – Quais são as características do autismo na adolescência?
José Salomão Schwartzman - Na adolescência, as manifestações do autismo dependem muito de como o indivíduo consegue aprender as regras sociais. O autista de bom rendimento, portador de síndrome de Asperger, por exemplo, embora tenha dificuldade de interação, é capaz de aprender as coisas através do intelecto.
Tenho pacientes relativamente bem integrados socialmente. Outro dia, conversando com um rapaz que acompanho faz tempo, perguntei-lhe se tinha namorada. Ele me disse que já tinha tido três. Quis saber, então, como fazia para relacionar-se com essas moças. “Olhe, Salomão, é muito simples. Comprei um livro de auto-ajuda e agora conheço algumas regras básicas de aproximação. Primeira regra: vista-se de acordo, isto é, ponha roupas que combinem. Regra dois: dirija-se a um shopping center. Ali, você anda pra lá e pra cá e, se vir uma menina bonita, chegue perto e peça o telefone. Se ela der o número, anote para não esquecer e vá embora. Regra três: na deixe de telefonar-lhe nas próximas 24 horas. Caso contrário, ela poderá não se lembrar mais de você.”
Drauzio – Ele elaborou um verdadeiro manual de instruções…
José Salomão Schwartzman – O mesmo ele fez, quando foi convidado para receber um prêmio num jantar de cerimônia. Comprou um livro de etiqueta, decorou todo o ritual a ser seguido e talvez o conheça melhor do que qualquer um de nós. Indivíduos com esse espectro do autismo costumam dar-se muito bem na vida.
Drauzio – Há possibilidade de um autista apaixonar-se?
José Salomão Schwatzman – Não no sentido que você se apaixonaria. Numa entrevista, o neurologista Oliver Sachs perguntou a Temple Grandin, uma autista americana famosa, considerada a maior autoridade viva em biologia animal, que ganha fortunas fazendo plantas de abate animal a fim de que não sofram na hora da morte (o que deixa sua carne melhor) se ela já havia namorado e sabia o que era a paixão. Ela lhe respondeu simplesmente: “Olhe, Oliver, sou autista”.
Autistas não fazem ideia do que seja a paixão, mas são capazes de estabelecer relações duradouras. Tenho alguns pacientes, casados, com filhos – alguns normais, outros não – que estabelecem relacionamentos sociais bem construídos e são independentes.
Drauzio – Com esse distúrbio grave de afeto, como eles conseguem estabelecer uma relação satisfatória com o parceiro?
José Salomão Scwartzman – É aquela velha história. Se a panela encontrar a tampa certa… Quer dizer, se o autista encontrar uma parceira que aceite esse tipo de relação, eventualmente uma mulher que também tenha dificuldades afetivas, a relação se mantém. Se me perguntassem quantos, eu diria que cerca de 5% dos autistas conseguem estabelecer uma relação afetiva bastante satisfatória.
Drauzio – Uma minoria, portanto.
José Salomão Schwartzman – Eles constituem a exceção, da mesma forma que constitui exceção o autista que se torna independente, capaz de levar vida normal e de sustentar-se. Apesar de existirem vários casos, lamentavelmente constituem a minoria.
DIFERENCIAÇÃO
Drauzio – Há autistas típicos, que ficam isolados, fazendo gestos repetitivos e estereotipados. E há autistas em que o distúrbio é discreto, quase imperceptível. No convívio diário, é possível perceber que essas pessoas menos afetadas também são autistas?
José Salomão Schwartzman – Depende do grau de familiaridade que a pessoa tenha com o autismo. Talvez, não reconheça o transtorno, mas seguramente irá perceber que existe algo de estranho, pois mesmo o autista de alto rendimento, aquele que consegue levar vida relativamente independente, traz marcas da condição que o acompanhará por toda a vida. Talvez, a mais presente seja a dificuldade de interação com o outro.
Na verdade, a marca registrada do autista, mesmo do muito inteligente, é a grande dificuldade do contato olho a olho. É óbvio que essa característica também é encontrada em indivíduos tímidos, mas não no mesmo grau. No autista, ela fica evidente na relação interpessoal, uma vez que ele é socialmente mais recatado, mais isolado.
RITUAIS
Drauzio – O autista de bom rendimento pode apresentar características de genialidade?
José Salomão Schwartzman - Costumo dizer que a diferenciação entre o autista de bom rendimento e o gênio é muito pouco precisa. Não pretendo fazer um diagnóstico à distância, mas há alguns exemplos que vale a pena mencionar. Provavelmente, Mozart tinha um distúrbio de desenvolvimento que é típico dos portadores da síndrome de Asperger. Ele compôs a primeira obra importante aos cinco anos, o que é maravilhoso, mas não é normal. Além disso, tinha enormes dificuldades de relacionamento. Seu casamento foi um desastre e seu comportamento era absolutamente inadequado. Se analisarmos a vida de Santos Dumont, veremos que era um indivíduo isolado, com pouquíssimo relacionamento social e, como a maioria dos autistas, vestia sempre o mesmo tipo de roupa. Aliás, os autistas costumam manter a rotina de forma absolutamente rígida. Conheço alguns que usam a mesma calça jeans durante cinco anos.
Drauzio – Existe alguma explicação para isso?
José Salomão Schwartzman – Não sei se é verdadeira, mas a explicação é que os rituais dos autistas existem para dar-lhes a certeza de que o mundo não muda. Toda a mudança – mudar de roupa, mudar de casa, mudar de escola – é um problema muito sério para eles. Às vezes, uma criança autista quebra uma porção de coisas em casa aparentemente sem razão. Quando se vai investigar, descobre-se que agiu assim ao dar-se conta de que um objeto qualquer não estava no lugar de costume.
É preciso entender que o cérebro dos autistas funciona de um modo completamente diferente.
Tenho um menino de seis anos que aprendeu a ler sozinho e gosta muito de esporte. Todos os dias, vai com o pai até a banca para comprar jornais. Ao chegar em casa, separa as folhas de esporte, põe uma em cima da outra e arquiva-as. Se alguém lhe perguntar sobre um jogo de futebol realizado anos antes, vai até o arquivo, separa a reportagem e mostra-a para o interessado.
Na verdade, parece que os autistas têm a tendência para querer que o mundo fique sempre igual. Talvez isso explique por que as crianças repitam tanto alguns comportamentos. Por exemplo, durante dois anos inteiros veem o vídeo da Branca de Neve. É só o da Branca de Neve. Depois passam para o do Nemo e não querem mudar. Às vezes, essa característica também se manifesta na alimentação. Existem autistas que só comem um tipo de comida durante anos. Só sorvete, só arroz de determinada marca. O interessante é que se a mãe muda de marca, embora a qualidade seja a mesma, eles olham para o prato e percebem a diferença.
CIRCUITARIA CEREBRAL
Drauzio – Há muita especulação sobre as alterações na circuitaria cerebral dos autistas. O que acontece no cérebro de uma criança que a faz comer arroz de uma determinada marca todos os dias?
José Salomão Schwartzman – Não chegamos ainda a esse nível de detalhamento, mas parece que ocorre um defeito nos mecanismos que controlam a morte dos neurônios. Ou seja, todos nascemos com mais neurônios do que vamos utilizar durante a vida. No entanto, entre dois e quatro anos, 50% deles são eliminados, porque para o sistema nervoso não têm mais serventia.
A maioria das crianças autistas possui o perímetro encefálico maior do que as crianças normais, diferença que desaparece depois dos quatro, cinco anos. Isso sugere que no período em que deveria ter ocorrido a poda neuronal, algum defeito em seu mecanismo prejudicou o processo.
Por essa razão talvez algumas estruturas do sistema nervoso do autista têm tamanho diferente. Já se falou muito no cerebelo, mas agora a suspeita recai sobre uma estrutura chamada amígdala, que faz parte do sistema límbico e é maior nos indivíduos autistas.
Drauzio – A amígdala é uma estrutura está envolvida no processamento das emoções…
José Salomão Schwartzman – Fundamentalmente envolvida e tem muito a ver com a memória social. No Mackenzie, o professor Marcos Mercadante, que trabalha com modelos animais, está fazendo uma experiência com ratos, mostrando que, se provocarmos uma lesão em determinada parte da amígdala, eles perdem a memória social. Claro que os ratos não se tornam autistas, mas passam a manifestar sintomas característicos do transtorno. Existem também evidências de que, com o passar do tempo, há uma redução no cérebro dos autistas provocada por defeito na circuitaria e não por defeito anatômico.
Drauzio – O problema está, então, em como os neurônios estabelecem sinapses uns com os outros.
José Salomão Schwartzman – Exatamente, está na maneira como eles se comunicam. Nesse sentido é que cabe discutir o tratamento medicamentoso, para modificar a ação dos neurotransmissores.
TRATAMENTO
Drauzio – Quando deve ser indicado o tratamento medicamentoso para o autismo?
José Salomão Schwatzman – Autismo é uma condição crônica que não tem cura. Entretanto, quem tem um filho autista corre atrás de qualquer tipo de recurso para tratamento.
Minha conduta é que o autista não necessita obrigatoriamente de medicação. No entanto, embora não exista remédio específico para autismo, existem alguns que ajudam a controlar certos sintomas-alvo, como agressividade, hiperatividade, etc. Por exemplo, os neurolépticos, drogas antipsicóticas usadas também na esquizofrenia, são indicados para autistas com distúrbios de comportamento que os impeçam de freqüentar escolas ou morar com a família. São remédios que não devem ser usados por prazos longos, isto é, que só devem ser usados enquanto absolutamente necessários.
Uma exceção à regra é a vitamina B6, apesar de não haver evidências científicas a respeito. As primeiras tentativas foram feitas por Bernard Rimland, psicólogo americano que tem um filho autista e defende que doses elevadas dessa vitamina funcionam como precursor de neurotransmissores. A experiência tem mostrado que alguns autistas, os portadores da síndrome de Asperger inclusive, respondem bem ao uso da vitamina B6. Isso não significa que os pais devam dá-la por conta própria aos filhos autistas, porque as doses utilizadas podem determinar efeitos colaterais que são conhecidos e podem ser controlados por um médico.
É importante mencionar também que a vitamina B6 pode prevenir o aparecimento ou, pelo menos minimizar a depressão que frequentemente acomete o autista adolescente. Aliás, é bom que se diga que autista de bom rendimento tem predisposição para a depressão. Não se sabe se a causa é endógena ou se é decorrente do fato de o indivíduo ser inteligente e, portanto, capaz de perceber suas dificuldades e limitações.
COMORBIDADE
Drauzio – Na fase da adolescência, quais são os mais comuns distúrbios psiquiátricos associados ao espectro autista?
José Salomão Schwartzman – Depressão é um dos distúrbios mais frequentes, mas existem associações com a síndrome de Tourette, com o transtorno obsessivo-compulsivo (TOC) e o transtorno de ansiedade. É preciso estar atento para as comorbidades, nome que se dá para a ocorrência de mais de uma condição ao mesmo tempo, porque necessitam de tratamento específico.
E mais: de 17% a 20% dos autistas são acometidos também por epilepsia, um índice muito alto, especialmente se comparado com o da população normal que é de 0,5% a 1%. Essa doença pode manifestar-se em qualquer idade e exige atenção, principalmente porque não se exterioriza sob a forma tradicional de uma convulsão típica, mas pode provocar crises psicomotoras marcadas por episódios de ausência ou por uma série de movimentos automáticos. Esses sintomas num indivíduo que já apresenta alguns distúrbios de comportamento, às vezes, são muito difíceis de serem notados.
ORIENTAÇÃO AOS PAIS
Drauzio – Como os pais devem comportar-se, quando o autista chega à adolescência? Existe alguma possibilidade de diálogo, de entendimento racional?
José Salomão Schwartzman – Com o autista inteligente, portador da síndrome de Asperger, existe. Esses indivíduos são sensíveis a terapias verbais. Todavia, elas não podem ser consideradas a única forma de tratamento, como era no início, quando se achava que a causa do autismo era uma relação inadequada entre a mãe e o filho.
Portanto, um caso de Asperger verbal em que haja alguma vida interior pode beneficiar-se com essas formas de terapia, desde que o terapeuta conheça bem o tipo de dificuldade de compreensão do autista. Se souber, é provável que a comunicação se estabeleça.
Essa regra vale também para a família. Por isso, os pais precisam receber todas as informações a respeito do filho e das dificuldades de compreensão que tem. Se não for assim, como lidar com o filho de 18 anos que não entende metáforas e se esconde debaixo da mesa quando o pai olha o céu e diz que vai chover canivete?
Tenho um menino de 8 anos que pôs fogo no porão da casa. Quando viu a fumaça, saiu correndo, mas cruzou com o pai que lhe falou: “Muito bem, veja só o que você fez”. Passada a confusão, o menino perguntou-lhe se havia gostado do que tinha feito. O pai disse que não, pois ele poderia ter acabado com a casa. “Por que você falou muito bem, então?”, indagou o garoto. O pai que estava bem a par da dificuldade do filho explicou-lhe que, em português, a expressão “muito bem” pode significar tanto “muito bem”, quanto “muito mal”.
Meses mais tarde, esse garoto foi ao consultório e eu lhe pedi que fizesse um desenho. Era a época do desastre de 11 de setembro, e ele desenhou as duas torres e os aviões. Quando me mostrou o que havia feito, eu disse “Muito bem, João”. Ao ouvir essas palavras, ele se levantou, pôs as mãos na cintura e quis saber à qual muito bem eu estava me referindo. Sua pergunta mostra que ele sabe que a expressão admite mais de um sentido, mas não a contextualiza.
Dá para imagine a confusão que se estabelece com os pais, com o professor quando uma pessoa inteligente reage dessa maneira e eles não estão suficientemente informados sobre a forma de agir nessas situações?
Os pais precisam saber também que, se o filho só demonstra interesse por dinossauros, não é conveniente oferecer-lhe tudo o que existe a respeito do assunto para não reforçar uma condição que é, acima de tudo, patológica.
Frequentemente pais de autistas necessitam de aconselhamento psicológico, não porque sejam causadores do problema, mas porque precisam aprender como lidar melhor com o filho, e a escola também deve ser instruída sobre o modo de proceder com esses alunos.
Oi Patrícia, temos muito em comum, tenho o Miguel 8 anos neurotípico, e o Gabriel 4 anos dentro do espectro autistico e como vc sou espírita também, mas resido em São Paulo. Hoje tenho minha primeira consulta com o Dr. Salomão. Por favor anote meu e-mail e vamos trocar figurinhas.
ResponderExcluirRaquel - raquel.anjos@gmail.com
Oi Raquel, e-mail anotado! vc tem facebook?
ExcluirMeu filho ainda não tem um diagnóstico fechado, e como já fui em diversos médicos, mesmo morando no RJ quero levá-lo no Dr. Salomão
ResponderExcluirMeu filho vai fazer 3 anos, esta fazendo tratamento com a fono e psico pedagoga, frequenta escola regular, mas ainda não fala e tem dificuldade em se comunicar, o que o deixa extremamente irritado, escola acha que tem TDAH, outros dizem que tem autismo, vou marcar uma consulta com dr. Salomão para fechar um diagnostico
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