A relação transferencial com crianças autistas: uma contribuição a partir do referencial de Winnicott
Lívia Milhomem Januário; Maria Izabel Tafuri
07 de novembro de 2011
Psicol. clin. vol.22 no.1 Rio de Janeiro jun. 2010
A relação transferencial com crianças autistas: uma contribuição a partir do referencial de Winnicott
Transferential relation with autistic children: a contribution from Winnicott's approach
Lívia Milhomem JanuárioI; Maria Izabel TafuriII
IMestra
e doutoranda em Psicologia Clínica e Cultura na Universidade de
Brasília (UnB); Pesquisadora do Laboratório de Psicopatologia e
Psicanálise do Instituto de Psicologia da UnB
IIDoutora em psicologia clínica; Professora Adjunta de psicologia clínica na Universidade de Brasília (UnB); Coordenadora do Laboratório de Psicopatologia e Psicanálise do Instituto de Psicologia da UnB
IIDoutora em psicologia clínica; Professora Adjunta de psicologia clínica na Universidade de Brasília (UnB); Coordenadora do Laboratório de Psicopatologia e Psicanálise do Instituto de Psicologia da UnB
RESUMO
O artigo
reflete a relação transferencial na clínica psicanalítica com crianças
autistas. Verifica-se que, a partir do trabalho de Melanie Klein (1930),
a análise da transferência com crianças autistas é realizada por meio
de interpretações verbais e o lugar do analista é o de intérprete. A
partir do pensamento de Winnicott, o analista ganha outro lugar na
situação transferencial com a criança autista para além da função de
intérprete. Dentre as ideias de Winnicott, enfatiza-se a questão do holding e
da interpretação, o modelo da "mãe suficientemente boa" como um
norteador da transferência e a importância dos vínculos sensoriais
não-verbais na relação transferencial.
Palavras-chave: transferência, interpretação, holding, autismo.
ABSTRACT
This article
reflects about the transferential relation in the psychoanalytic clinic
with autistic children. It is verified that, from the work of Melanie
Klein (1930), the analysis of transference with autistic children is
carried out through verbal interpretations and the place of the analyst
is that of an interpreter. From the thought of Winnicott, the analyst
gains another place in the transferential situation with the autistic
child, far beyond the function of an interpreter. Winnicott emphasizes
the ideas of holding, interpretation, and the model of a "good enough
mother" as a guide for the transference and the importance of non-verbal
sensory links in the transferential relation.
Keywords: transference, interpretation, holding, autism.
O SURGIMENTO DA CLÍNICA PSICANALÍTICA COM CRIANÇAS AUTISTAS
Com Melanie
Klein ([1930] 1996) surge, pela primeira vez, no contexto psicanalítico,
a descrição do tratamento bem-sucedido de uma criança ensimesmada de
apenas quatro anos de vida, o Pequeno Dick. Apesar de Freud não
acreditar na análise de pacientes isolados afetivamente, Klein apresenta
a possibilidade de analisá-los por meio do método clássico freudiano, a
interpretação.
Klein difunde a
psicanálise com crianças autistas ao descrever o caso do pequeno Dick.
Em nota explicativa, a comissão editorial inglesa afirma que o material
clínico apresentado com o caso Dick "inaugura uma nova era. Em termos
históricos, esse é o primeiro relato publicado da análise de uma criança
psicótica, onde fica claro que é possível estabelecer um contato
analítico e despertar o desenvolvimento" (Klein, [1930] 1996: 249).
Nesse caso,
Klein descreve a história clínica de uma criança ensimesmada com
sintomatologia parecida com a de crianças ditas esquizofrênicas, no
entanto com ausência de vida fantasiosa. Assim, fenomenologicamente, a
descrição que Klein faz dessa criança acaba sendo muito semelhante à
síndrome descrita por Kanner ([1943] 1997) como "autismo infantil
precoce".
Na clínica com
Dick, Klein ([1930] 1996) se depara com uma questão técnica: seria
possível interpretar uma criança que não estabelece, a princípio, uma
relação transferencial? A técnica do brincar e da interpretação do jogo
desenvolvida por ela acompanha as representações simbólicas da criança e
dá acesso à sua ansiedade e ao seu sentimento de culpa por meio do
simbolismo revelado no brincar da criança. Porém Dick não estabelece uma
relação afetiva e simbólica com os objetos, "suas ações fortuitas
diante deles não eram tingidas pela fantasia e, por isso, não era
possível atribuir-lhes o caráter de representações simbólicas" (Klein,
[1930] 1996: 256-257). Klein conclui então que na análise se "viu
obrigada a partir desse ponto (ausência de uma relação simbólica com as
coisas), que era o obstáculo fundamental para se estabelecer contato com o menino" (Klein, [1930] 1996: 256-257; grifo da autora).
Entretanto,
aqui há uma questão de fundamental importância para o saber
psicanalítico acerca da psicanálise com crianças. Por que a psicanalista
teria insistido em continuar utilizando a técnica da interpretação do
jogo com Dick, uma criança que não apresenta pensamentos fantasiosos e
que não representa a realidade? Para que antecipar um jogo para a
criança a partir do pensamento do próprio analista? Nas palavras da
autora:
Em geral, não interpreto o material até ele ter sido expresso em várias representações. Contudo, num caso em que a capacidade de representação era quase inexistente, fui obrigada a basear minhas interpretações no meu conhecimento geral, pois as representações que se manifestavam no comportamento de Dick eram relativamente vagas (Klein, [1930] 1996: 260).
Klein afirma
que na análise do Dick conseguiu "ter acesso ao inconsciente do menino
ao entrar em contato com os rudimentos de fantasia e formação de
símbolos que ele apresentava" (Klein, [1930] 1996: 259). Com essa
passagem, observa-se que Klein não altera sua técnica de trabalho ao
atender crianças ensimesmadas. Ela continua interpretando o brincar da
criança tendo como referência o sadismo e o complexo de Édipo, ou seja,
ela interpreta os comportamentos de Dick com base nos símbolos
primordiais como o seio e o pênis, visando à diminuição da ansiedade e
do sentimento de culpa. Percebe-se, assim, que a autora interpreta a
partir do conhecimento prévio da teoria psicanalítica e do saber do
analista. Klein utiliza então as interpretações verbais para analisar a
relação analítica e encontrar sentido e valor simbólico nos
comportamentos da criança, não realizando uma mudança significativa na
técnica psicanalítica clássica utilizada com crianças ditas neuróticas.
Muitos autores
como, por exemplo, Figueiredo (2000) criticam essa postura de Klein,
afirmando que sua técnica tende a incrementar a intrusividade do
analista: suas "interpretações precoces, tendenciosas, unilateralmente
centradas nos vínculos transferenciais e a imposição impaciente destes
vínculos tendem a fazer do campo transferencial-contratransferencial um
campo excessivamente fechado" (Figueiredo, 2000: 27).
Ao analisar o
trabalho de Klein, Tafuri (2003) conclui que o lugar que Klein ocupa na
clínica psicanalítica com a criança autista é o lugar de analista
intérprete. O papel da analista é o de interpretar, o mais breve
possível, o simbolismo revelado por detalhes do comportamento da
criança, mesmo na ausência da fala e do brincar simbólico. Ao questionar
os princípios teóricos e técnicos da clínica psicanalítica com crianças
autistas, a autora ressalta que o lugar de analista intérprete das
ansiedades mal simbolizadas fica reconhecido no âmbito psicanalítico
como o da "verdadeira psicanálise" e que isso marca bastante o
desenvolvimento posterior da clínica psicanalítica com crianças.
Tafuri (2003)
explica ainda que a clínica psicanalítica com crianças autistas foi
"tradicionalmente desenvolvida a partir de um eixo básico: atribuir
sentido ou valor significante e interpretar os comportamentos gestuais e
sonoros do infans" (Tafuri, 2003: 169). Essa maneira de trabalhar
produziu diferentes formas de interpretação: "interpretação do jogo
(Klein), interpretação de figuras e objetos autísticos (Tustin, Meltzer,
Haag e Ogden) e interpretação ou tradução dos significantes (Lefort,
Dolto, Mannoni, Jerusalinsky e Laznik-Penot)" (Tafuri, 2003: 169), todas
tendo como princípio básico a interpretação verbal.
A clínica psicanalítica com crianças obtém com os trabalhos de Winnicott, na década de 1950, uma abertura maior em relação ao setting e
ao lugar que o analista ocupa na relação transferencial com a criança.
Winnicott é um dos psicanalistas que questiona a função de analista
intérprete de símbolos universais que não contemplam a história
individual da criança.
Na concepção
winnicottiana, a ênfase recai sobre o manejo clínico, termo utilizado em
relação ao cuidado dispensado a determinados pacientes no setting psicanalítico,
bem sobre a relação analítica. Abram ([1996] 2000) explica que a
graduação do manejo depende da patologia apresentada pelo paciente para
que se possa estabelecer o tipo de holding necessário: "com bastante frequência Winnicott faz referência ao holding como uma espécie de manejo" (Abram, [1996] 2000: 139).
A CONCEPÇÃO WINNICOTTIANA: HOLDING E INTERPRETAÇÃO
Winnicott é um
autor que contribui de forma profunda e original para o pensamento
psicanalítico. Como Pediatra, inicia seu trabalho com o atendimento dos
bebês, dedicando-se ao estudo dos estágios mais primitivos do
desenvolvimento emocional do indivíduo. Para o autor, a teoria do
desenvolvimento emocional primitivo guia a compreensão dos fenômenos
humanos com os quais os analistas se deparam na clínica. Winnicott
afirma que os analistas devem ser capazes de localizar o estágio
maturacional do indivíduo no qual seu sofrimento teve origem. Desse
modo, pode-se compreender a natureza do problema com o qual o sujeito
está envolvido, procedendo de forma adequada em relação aos cuidados
específicos com o paciente que, por sua vez, devem ser conduzidos de
acordo com as necessidades deste.
Diante disso,
pode-se observar que Winnicott ([1955a] 2000) costuma dividir os casos
clínicos em três categorias distintas com base em diferentes registros
de sofrimento decorrentes de diferentes momentos de falhas no processo
maturacional e que demandam modos distintos e específicos de trabalho
clínico.
A primeira
variedade clínica refere-se a pacientes ditos neuróticos que funcionam
como pessoas inteiras e às dificuldades que se localizam no âmbito dos
relacionamentos interpessoais. Nesse caso, a técnica de trabalho é a
mesma desenvolvida por Freud. Recorre-se ao setting clássico
freudiano, utilizando como ferramenta básica a interpretação da
transferência com o intuito de trazer à luz o material inconsciente
recalcado (Winnicott, [1955a] 2000).
A segunda é a
clínica com pacientes que começaram a se integrar, mas que ainda não
conquistaram a estabilidade no seu sentido de unidade. A análise, nesse
caso, tem a ver não só com a aquisição de uma unidade como também com a
junção do amor e do ódio e o reconhecimento da dependência. O elemento
mais importante aqui é a sobrevivência do analista na condição do fator
dinâmico. Para Winnicott, a técnica, nesse tipo de trabalho, não difere
da primeira categoria, mas surgem novos problemas com relação ao manejo,
tendo-se, assim, a junção do manejo aos princípios da análise clássica
(Winnicott, [1955a] 2000).
A terceira
clínica refere-se ao acolhimento de pacientes psicóticos, no qual a
análise precisa lidar com os estágios iniciais do desenvolvimento
emocional. Essa clínica relaciona-se com períodos anteriores ao
estabelecimento da personalidade como uma entidade. A estrutura pessoal
ainda não está integrada e é anterior à aquisição da unidade pessoal em
termos de espaço e tempo. Nesse caso, a ênfase recai sobre o manejo
clínico e o estabelecimento do setting, caracterizado por uma complexa organização de holding (Winnicott, [1955a] 2000).
Esse terceiro
tipo de clínica é o foco deste artigo. Nessa clínica, Winnicott ([1955b]
2000) observa que não é possível considerar o ego uma entidade
estabelecida. "Não pode, então, existir também uma neurose de
transferência, para a qual certamente é preciso que haja um ego"
(Winnicott, [1955b] 2000: 394). O autor afirma que, quando há "um ego
intacto e o analista pode ter certeza sobre a qualidade dos cuidados
iniciais, o contexto analítico revela-se menos importante que o trabalho
interpretativo" (Winnicott, [1955b] 2000: 395). Nesse caso, realiza-se
uma psicanálise clássica, na qual o objetivo do trabalho de análise
consiste em trazer para a consciência aquilo que estava inconsciente por
meio da interpretação da revivência que ocorre na relação
transferencial.
No entanto, na
análise de pacientes autistas, eles "não esperam que a análise os torne
mais conscientes, mas aos poucos eles podem vir a ter esperança de que
lhes seja possível sentir-se reais" (Winnicott, [1988] 1990: 79). Nesse
caso, o contexto (setting/ambiente) torna-se mais importante que a interpretação, e a manutenção de uma situação adaptativa ao ego é fundamental.
A clínica com pacientes autistas demanda uma situação analítica que tem como característica o que Winnicott denomina de holding. A noção de holding na teoria winnicottiana é de extrema importância para o manejo clínico e o holding é compreendido como sustentação:
sustentar determinadas experiências ao longo de um tempo sem
interromper a experiência do paciente. Significa oferecer um ambiente/setting que sustente e permita o processo de integração do sujeito.
Em casos extremos, talvez seja necessário que, em algum momento da análise, o holding assuma
uma forma física, mas Winnicott ([1954] 2000) relaciona esse cuidado
com a compreensão do sofrimento do paciente e a expressão dessa
compreensão, de modo que o paciente sinta-se sustentado pelo analista:
"toda vez que compreendemos profundamente um paciente, e o mostramos
através de uma interpretação correta e feita no momento certo, estamos
de fato sustentando o paciente" (Winnicott, [1954] 2000: 354).
Em seus textos,
Winnicott revela que, na clínica com pacientes autistas, antes de
fornecer interpretações, o objetivo da análise é proporcionar um
"ambiente suficientemente bom", que se adapte à necessidade que surge do
ser e dos processos de maturação, de modo que se permita o surgimento
de um ego, o abandono de organizações defensivas e a retomada do
processo de amadurecimento.
Para isso, é
necessário que a análise propicie as condições que faltaram nos momentos
das falhas ambientais e que impediram o desenvolvimento saudável.
Deve-se ainda levar em consideração que cada período do amadurecimento
requer condições diferentes, o que leva a modificações no trabalho de
análise de acordo com as necessidades de cada paciente em relação a
determinado ponto do amadurecimento.
A análise é vista como a satisfação das necessidades com base na noção de holding,
o que mostra uma outra forma de trabalho onde, até então, o principal
instrumento era a interpretação. Winnicott ([1962] 1983) coloca que, na
situação clínica descrita, as interpretações relativas aos conteúdos da
sessão produziriam um efeito nocivo quando se considera, por exemplo, a
intrusão que uma interpretação transferencial clássica representa ao
apresentar o analista como um outro não-eu para um paciente que o
necessita, ainda, como fazendo parte de si mesmo. Nesse caso, o analista
"teria sido um mau analista fazendo uma boa interpretação" (Winnicott,
[1962] 1983: 228).
É importante salientar que na obra de Winnicott a diferenciação entre holding e interpretação não se dá de forma clara. Em alguns de seus textos, como em Holding e interpretação (Winnicott, [1972] 2001), o autor pontua que a interpretação pode funcionar como holding. Desta forma, Winnicott utiliza a noção de ambiente-holding para descrever o setting analítico. Em termos de relação analítica é o setting, a atenção dispensada pelo analista, juntamente com o trabalho interpretativo, que cria o ambiente de holding que norteia as necessidades psicológicas e físicas do pacientes.
O MODELO DA "MÃE SUFICIENTEMENTE BOA": UM NORTEADOR DA RELAÇÃO TRANSFERENCIAL
Para Winnicott,
a relação transferencial está baseada no paradigma da relação mãe e
bebê, no que originalmente eram o lactente e a mãe. A relação analítica
assume características fundamentais da relação primitiva mãe-bebê, já
que Winnicott relaciona a dependência na transferência à dependência aos
estágios do cuidado do lactente e da criança.
Winnicott
([1956] 2000) afirma que a "mãe suficientemente boa" é a mãe que
ingressa em estado de "preocupação materna primária", que, identificada
com seu bebê consciente e inconscientemente e em um estado de
sensibilidade exacerbada, consegue uma adaptação sensível, ativa e
delicada às necessidades do bebê. A "mãe suficientemente boa" também diz
respeito à adaptação da mãe às necessidades do bebê, que o torna capaz
de ter uma experiência de onipotência que cria a ilusão necessária a um
desenvolvimento saudável.
Ao utilizar o
modelo da "mãe suficientemente boa" como norteador da transferência,
Winnicott ressalta que o analista precisa estar identificado ou mesmo
fundido com o paciente, mas também permanecer orientado para a realidade
externa. É estar identificado e, ao mesmo tempo, cuidando do paciente, o
que só é possível por meio da transicionalidade, ou seja, depende da
capacidade do analista de manter o espaço potencial, uma área
intermediária que não é inteiramente subjetiva nem objetiva.
Winnicott explica que, nas situações de interrupção precoce no processo de desenvolvimento, o trabalho de análise deve criar um setting em
que o paciente possa ter experiências semelhantes à maternagem, mas
agora na presença de um ambiente propício ao amadurecimento saudável.
Para Winnicott, é por meio das funções maternas de holding, de handling e
de "apresentação de objeto", nas fases mais primitivas, que a "mãe
suficientemente boa" oferece condições favoráveis para o desenvolvimento
dos processos de integração, de personalização e de realização,
respectivamente.
Com a função do holding,
como visto, a "mãe suficientemente boa" permite o processo de
integração, no qual o ego se integra em uma unidade e tem-se o "eu sou" e
o início da constituição do si mesmo. Com a função materna de handling (manejo)
pode ocorrer a "personalização", isto é, a interação dos aspectos da
psique e do soma a partir da qual o bebê adquire a capacidade de habitar
o próprio corpo. Com a função de "apresentação de objetos", a mãe
auxilia o bebê na capacidade de viver a ilusão de onipotência de que o
mundo é uma criação sua.
Ainda com
relação ao modelo da "mãe suficientemente boa" como norteador da relação
transferencial, cabe ressaltar que o analista não é a mãe que cuida de
um bebê e não deve utilizar técnicas de maternagem com os pacientes.
Apesar de o analista identificar-se na transferência com o paciente e
com as suas necessidades primitivas, assim como ocorre com a mãe no
estado de "preocupação materna primária", ele precisa manter-se na
posição de analista para poder cuidar de forma confiável.
O analista
confiável é ou age na transferência como um ambiente facilitador,
dirigindo sua atenção para aquilo que o paciente necessita naquele
momento. Isso não significa que o analista supre as necessidades do
paciente como sua mãe. Caso o analista ultrapasse os cuidados adequados e
tente fazer mais do que um analista pode fazer, ele estará sendo o
substituto da mãe verdadeira e não um "analista suficientemente bom",
assim como a mãe extremamente boa não é uma "mãe suficientemente boa"
para o desenvolvimento do bebê. Assim, não se trata também de restaurar
experiências, mas de possibilitar condições ambientais para que o
amadurecimento emocional do paciente seja retomado.
Winnicott
([1962] 1983) alerta que essa situação clínica não é uma experiência
corretiva na transferência, o que seria uma contradição, na medida em
que a transferência se dá por meio do processo psicanalítico
inconsciente do paciente e depende, para o seu desenvolvimento, da
interpretação do analista, que é sempre relativa ao material apresentado
pelo paciente. Porém "a prática de uma boa técnica psicanalítica pode por
si só ser uma experiência corretiva e, por exemplo, na análise um
paciente pode, pela primeira vez na vida, conseguir a atenção total de
outra pessoa... ou estar em contato com alguém que é capaz de ser
objetivo" (Winnicott, [1962] 1983: 232-233; grifo do autor).
Com relação a
essa questão da "mãe suficientemente boa" como norteador da relação
transferencial na clínica com pacientes em sofrimento psíquico grave,
Safra (2004) ressalta a necessidade de discriminar o que é específico da
relação mãe-bebê e o que é específico da condição humana, já que o que
se revela nas situações transferenciais não é, necessariamente, a
relação mãe-bebê, mas as facetas fundamentais da dimensão humana. Nessa
discriminação, a transferência é relacionada aos períodos do
desenvolvimento emocional em que o paciente teve maiores dificuldades ou
em que apresenta uma falha ambiental precoce e os cuidados maternos são
utilizados como metáfora.
Em Holding e interpretação,
por exemplo, Winnicott ([1972] 2001) ilustra uma situação clínica na
qual o analista é colocado na função transferencial paterna. Nesse caso,
em virtude de a história de vida do paciente ser marcada pela ausência
da figura paterna e pelo não-reconhecimento da maturidade do paciente
pelo pai com a proibição do incesto, com a rivalidade e com a
impossibilidade de destruir o pai na fantasia, o paciente não pôde fazer
uso da figura paterna. Winnicott, ao ocupar o lugar transferencial do
pai, pôde facilitar a retomada do processo de constituição desse
paciente.
O analista, a
partir desse ponto de vista, age de acordo com o lugar em que é colocado
pelo paciente no processo transferencial, variando de acordo com as
necessidades do paciente e tendo como norteador da transferência não
apenas a relação mãe-bebê, mas todo o processo de constituição do
sujeito. Winnicott ressalta que o analista só compreende a natureza do
sofrimento do sujeito e pode fornecer cuidados específicos de acordo com
a necessidade do paciente ao considerar o processo de amadurecimento do
indivíduo em sua totalidade. Contudo, o autor alerta que um dos
problemas mais difíceis da técnica psicanalítica consiste em saber qual a
idade emocional do paciente em um dado momento da relação
transferencial.
Winnicott
([1955b] 2000) afirma que quando o analista é suficientemente bom, isto
é, está identificado com as necessidades do paciente proporcionando um
"ambiente suficientemente bom" em relação à adaptação às necessidades do
paciente, este tem a experiência de ser sustentado por um ambiente e
esse ambiente (setting/analista) "vai sendo gradualmente percebido pelo paciente como algo que faz nascer a esperança de que o self verdadeiro
possa finalmente ser capaz de assumir os riscos que o início da
experiência de viver implica" (Winnicott, [1955b] 2000: 486).
OS VÍNCULOS SENSORIAIS NÃO-VERBAIS NA TRANSFERÊNCIA
Em sua última
década de vida, Winnicott ([1968] 1996) desenvolve o estudo do
significado da comunicação, afirmando que a habilidade de comunicar-se
não está fundada, inicialmente, na aquisição da linguagem, mas, sim, em
uma interação não-verbal estabelecida por intermédio da experiência de
mutualidade entre mãe e bebê, na qual a mãe está identificada de forma
tão intensa com seu bebê que ele se sente compreendido.
Consequentemente, a habilidade do bebê de brincar e de simbolizar
precede o período em que passa a fazer uso de palavras.
Winnicott
([1968] 1996), ao examinar as experiências iniciais de vida do bebê no
que diz respeito à comunicação, afirma que a mãe pode, ou não, falar com
seu bebê; isso não é relevante, pois a linguagem não é importante nessa
etapa do desenvolvimento emocional. Nessa fase, o importante é a
experiência de confiabilidade, que é um tipo de comunicação silenciosa.
Dentre as comunicações silenciosas iniciais, Winnicott ressalta o
movimento que provém da respiração da mãe; o calor de seu hálito; o seu
cheiro; o som das batidas de seu coração; a comunicação física que pode
ser ilustrada pelo movimento de embalar, no qual a mãe adapta os seus
movimentos aos do bebê; e as expressões do rosto da mãe e o uso que o
bebê pode fazer desse rosto. Há também as comunicações não-silenciosas,
por meio da melodia, do ritmo e da entonação da voz da mãe, como, por
exemplo, a utilização de canções de ninar.
A
confiabilidade é extremamente necessária e está intimamente vinculada à
integração mãe-bebê em uma unidade, permitindo ao bebê ser e continuar
sendo. O mundo do bebê, nos primeiros momentos de vida, se reduz à mãe
que deve ser, acima de tudo, confiável. A confiabilidade materna aparece
no modo como a mãe cuida do bebê. Para Winnicott, atos de
confiabilidade humana estabelecem uma comunicação muito antes que o
discurso signifique algo: o modo como a mãe olha quando se dirige à
criança, o tom e o som de sua voz, tudo isso é comunicado muito antes
que se compreenda o discurso.
A partir da
análise da relação mãe-bebê, Winnicott ([1968] 1996: 81) leva o leitor
para "um lugar onde a verbalização perde todo e qualquer significado", e
ele se questiona: "Que ligação pode haver entre tudo isso e a
psicanálise, que se fundamentou no processo de interpretações verbais de
pensamentos e ideias verbalizados?". Em síntese, Winnicott diz que "a
psicanálise teve que partir de uma base de verbalização, e que tal
método é perfeitamente adequado para o tratamento de um paciente que não
seja esquizoide ou psicótico", isto é, para pacientes que não precisam
ir em busca de experiências primitivas (Winnicott, [1968] 1996: 81).
Esses fenômenos primordiais manifestam-se como características primárias
de duas maneiras:
primeiramente, nas fases esquizoides pelas quais qualquer paciente pode passar, ou no tratamento de problemas realmente esquizoides; em segundo lugar, no estudo das experiências iniciais concretas de bebês que estão para nascer, que acabaram de nascer, que são segurados no colo após o nascimento, que receberam cuidados e com os quais nos comunicamos nas primeiras semanas e meses, muito antes da verbalização ter adquirido qualquer significado (Winnicott, [1968] 1996: 82).
Percebe-se,
então, que o estudo da relação mãe-bebê revela o que pacientes em fases
psicóticas necessitam do analista e há, também, um feedback desses pacientes a partir do qual pode-se aprender a observar as mães e os bebês, vendo mais claramente o que ali se encontra. "Essencialmente, porém, é a partir das
mães e dos bebês que aprendemos sobre as necessidades dos pacientes
psicóticos, ou de pacientes que atravessam fases psicóticas" (Winnicott,
[1968] 1996: 90; grifos do autor).
Continuando com
esse paralelo entre a relação mãe-bebê e a clínica, Winnicott reflete
sobre as implicações para a técnica psicanalítica. Utilizando como
exemplo as inflexões que caracterizam o discurso, o autor mostra que o
fato de o paciente verbalizar e o analista interpretar não é apenas uma
questão de comunicação verbal e que muito depende da maneira como o
analista usa as palavras e, portanto, da atitude que se oculta por trás
de uma interpretação.
Com relação à clínica psicanalítica com pacientes autistas, o analista é enviado a situações em que as palavras não oferecem o holding necessário,
como na relação inicial entre mãe-bebê, na qual a comunicação é
estabelecida por meio de vínculos sensoriais não-verbais. Assim, embora a
psicanálise se baseie na interpretação verbal, junto ao conteúdo das
interpretações e das verbalizações existe algo que tem sua própria
importância e se reflete "nas nuanças, no ritmo e em milhares de outras
formas que podemos comparar à variedade infinita da poesia" (Winnicott,
[1968] 1996: 85).
Furtado (2006) –
considerando que, nas etapas primitivas da formação do psiquismo, o
universo sensorial desempenha uma função de protagonista da cena
psíquica – constata a presença de uma imensa gama de sensações atuantes
na relação transferencial, assim como nos momentos primordiais da
constituição da subjetividade. Revela que, no trabalho de análise, as
experiências sensoriais que fizeram parte da experiência pregressa do
analisando moldam a relação transferencial, marcando a forma de
apreensão e de ação do sujeito no mundo e guiando sua forma de ação no setting.
Assim, a autora assinala a necessidade de o analista buscar, ao longo
do tratamento, a criação de possibilidades para a emergência de
experiências resultantes do estabelecimento de uma relação
intersubjetiva doadora de sentido e produtora de um efeito organizador
para a subjetividade do paciente. Diante disso, ressalta a importância
de a dimensão sensorial da transferência ser resgatada para uma
compreensão mais ampla do campo transferencial.
Safra (2005) é
outro autor que frisa a importância do resgate da sensorialidade na
relação transferencial. Ele explica que, na clínica com pacientes
autistas, que nem mesmo se constituíram, o analista necessita de
procedimentos que possibilitem ao sujeito utilizar-se do campo
transferencial para constituir aspectos fundamentais de seu self que
até então ficaram sem realização. Ao fornecer as funções buscadas pelo
paciente para que ele dê continuidade ao desenvolvimento de si mesmo, o
analista observa fenômenos de significação e de articulação simbólica.
Contudo, Safra esclarece que, mais do que um processo de deciframento
das produções do paciente, há uma apresentação do self em
gesto e em formas imagéticas (formas sensoriais) sustentadas pela
relação transferencial, na qual o indivíduo se constitui e se significa
frente ao outro.
Em seu
trabalho, Safra (2005) demonstra a importância dos vínculos sensoriais
não-verbais na transferência. Em suas palavras, é "fundamental que o
analista possa acompanhar tanto vivências psíquicas que se expressam
pela linguagem discursiva, quanto aquelas que emergem, por meio de
símbolos estéticos, como símbolos do self, articulados plasticamente no campo sensorial" (Safra, 2005: 29-30).
Tafuri (2003)
ilustra a utilização dos vínculos sensoriais não-verbais na clínica com
crianças autistas ao descrever o caso clínico de Maria, no qual um jogo
de sons entre a analista e a criança proporciona a constituição de um
"ambiente-holding-sonoro", possibilitando o manejo da relação
analítica com a criança. A partir desse trabalho de Tafuri, outros
trabalhos vêm sendo desenvolvidos no Laboratório de Psicopatologia e
Psicanálise do Instituto de Psicologia da Universidade de Brasília,
demonstrando a importância dos vínculos sensoriais não-verbais para o
manejo da transferência na clínica psicanalítica com crianças autistas.
Dentre eles podemos destacar os trabalhos de Benjamin (2007) sobre o
ritmo, de Januário (2008) sobre o olhar e de Araújo (2008) sobre o
corpo.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Com relação à
história da clínica psicanalítica com crianças autistas, foi constatado
que o manejo da relação transferencial era realizado por meio de
interpretações verbais. Diante disso, discutiu-se o lugar de analista
intérprete, herança clássica kleiniana, no qual o papel da analista é o
de interpretar, o mais breve possível, o simbolismo revelado por
detalhes do comportamento da criança, mesmo na ausência da fala e do
brincar simbólico.
Contudo, a
partir das obras de Winnicott, mostrou-se o desenvolvimento de uma
abordagem diferente da tradicional que contribui de forma significativa
para a clínica psicanalítica com crianças autistas. Dentre as ideias de
Winnicott, ressaltaram-se a noção de holding,
a relação transferencial para além da interpretação, o modelo da "mãe
suficientemente boa" como norteador da transferência e a importância dos
vínculos sensoriais não-verbais.
Foi discutido o
fato de a clínica com crianças autistas colocar em questão a
perspectiva clássica de que a análise de qualquer pessoa pode ser feita
por meio da linguagem verbal. Nessa clínica, a técnica clássica da
interpretação está, muitas vezes, inabilitada, não sendo possível
interpretar os comportamentos das crianças. Assim, o trabalho de análise
entra em uma situação de impasse, pois a técnica clássica da
interpretação pode ameaçar ainda mais o paciente, levando-o a
experiências de desintegração e de fragmentação. Diante disso,
ressaltou-se a importância dos vínculos sensoriais não-verbais no manejo
da transferência.
REFERÊNCIAS
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