Neuropediatra, formado na Escola Paulista de
Medicina da Universidade Federal de São Paulo, especializou-se em Neurologia
Infantil no Hospital for Sick Children, em Londres, e é professor titular de
pós-graduação em Distúrbios do Desenvolvimento na Universidade Presbiteriana
Mackenzie.
CARACTERÍSTICAS DO AUTISMO – INTERAÇÃO PESSOALO
que chama mais atenção na criança autista é a dificuldade de interação pessoal.
O desejo e a forma de interagir com o outro são inatos na espécie humana.
Aparentemente, um equipamento biológico faz com que as pessoas despertem a
curiosidade e o interesse do bebê. Logo nas primeiras horas de vida, diante de
outras figuras, ele já demonstra preferência por um rosto. Esse elo, que falta
ou está profundamente perturbado no autista, determina uma característica que
vai acompanhá-lo a vida toda.
Embora autismo não tenha cura, o quadro se
modifica à medida que o indivíduo fica mais velho. Modifica-se, primeiro, em
função de um processo maturativo decorrente de suas experiências com o mundo:
como se relaciona com os outros, como é tratado e, talvez o mais importante, se
existe algum retardo mental associado.
Na verdade, 70% dos autistas
apresentam algum grau de retardo mental, o que caracteriza o quadro de forma um
pouco diferente. O seguimento a longo prazo desses indivíduos, enfocando
especialmente as dificuldades de interação social, mostra que, no autista não
portador de retardo mental ou, pelo menos, que não tem retardo mental
pronunciado, embora a dificuldade de relacionamento social persista por toda a
vida, pode ser atenuada.
Essa dificuldade de interação manifesta-se
com os familiares ou só com as pessoas estranhas?José Salomão
Schwartzman – Manifesta-se com todo o mundo. Como regra geral, a dificuldade de
interação se dá com a mãe, o pai, os irmãos e com todo o mundo
exterior.
O grau de dificuldade é o mesmo com a mãe, por exemplo, e
com as pessoas estranhas?José Salomão Schwartzman – Não é. A relação
é um pouco mais próxima com as pessoas que lhe são familiares. As mães contam,
porém, especialmente quando já tiveram outros filhos, que desde o começo aquele
bebê aninhou-se de modo diferente em seu colo e não a olhava nos olhos enquanto
estava mamando.
AUTISMO NA ADOLESCÊNCIAQuais são as
características do autismo na adolescência?José Salomão Schwartzman
- Na adolescência, as manifestações do autismo dependem muito de como o
indivíduo consegue aprender as regras sociais. O autista de bom rendimento,
portador de síndrome de Asperger, por exemplo, embora tenha dificuldade de
interação, é capaz de aprender as coisas através do intelecto.
Tenho
pacientes relativamente bem integrados socialmente. Outro dia, conversando com
um rapaz que acompanho faz tempo, perguntei-lhe se tinha namorada. Ele me disse
que já tinha tido três. Quis saber, então, como fazia para relacionar-se com
essas moças. “Olhe, Salomão, é muito simples. Comprei um livro de auto-ajuda e
agora conheço algumas regras básicas de aproximação. Primeira regra: vista-se de
acordo, isto é, ponha roupas que combinem. Regra dois: dirija-se a um shopping
center. Ali, você anda pra lá e pra cá e, se vir uma menina bonita, chegue perto
e peça o telefone. Se ela der o número, anote para não esquecer e vá embora.
Regra três: na deixe de telefonar-lhe nas próximas 24 horas. Caso contrário, ela
poderá não se lembrar mais de você.”
Ele elaborou um verdadeiro manual
de instruções…José Salomão Schwartzman – O mesmo ele fez, quando foi
convidado para receber um prêmio num jantar de cerimônia. Comprou um livro de
etiqueta, decorou todo o ritual a ser seguido e talvez o conheça melhor do que
qualquer um de nós. Indivíduos com esse espectro do autismo costumam dar-se
muito bem na vida.
Há possibilidade de um autista
apaixonar-se?José Salomão Schwatzman – Não no sentido que você se
apaixonaria. Numa entrevista, o neurologista Oliver Sachs perguntou a Temple
Grandin, uma autista americana famosa, considerada a maior autoridade viva em
biologia animal, que ganha fortunas fazendo plantas de abate animal a fim de que
não sofram na hora da morte (o que deixa sua carne melhor) se ela já havia
namorado e sabia o que era a paixão. Ela lhe respondeu simplesmente: “Olhe,
Oliver, sou autista”.
Autistas não fazem ideia do que seja a paixão, mas
são capazes de estabelecer relações duradouras. Tenho alguns pacientes, casados,
com filhos – alguns normais, outros não – que estabelecem relacionamentos
sociais bem construídos e são independentes.
Com esse distúrbio grave
de afeto, como eles conseguem estabelecer uma relação satisfatória com o
parceiro?José Salomão Scwartzman – É aquela velha história. Se a
panela encontrar a tampa certa… Quer dizer, se o autista encontrar uma parceira
que aceite esse tipo de relação, eventualmente uma mulher que também tenha
dificuldades afetivas, a relação se mantém. Se me perguntassem quantos, eu diria
que cerca de 5% dos autistas conseguem estabelecer uma relação afetiva bastante
satisfatória.
Uma minoria, portanto.José Salomão
Schwartzman – Eles constituem a exceção, da mesma forma que constitui exceção o
autista que se torna independente, capaz de levar vida normal e de sustentar-se.
Apesar de existirem vários casos, lamentavelmente constituem a
minoria.
DIFERENCIAÇÃOHá autistas típicos, que
ficam isolados, fazendo gestos repetitivos e estereotipados. E há autistas em
que o distúrbio é discreto, quase imperceptível. No convívio diário, é possível
perceber que essas pessoas menos afetadas também são autistas?José
Salomão Schwartzman – Depende do grau de familiaridade que a pessoa tenha com o
autismo. Talvez, não reconheça o transtorno, mas seguramente irá perceber que
existe algo de estranho, pois mesmo o autista de alto rendimento, aquele que
consegue levar vida relativamente independente, traz marcas da condição que o
acompanhará por toda a vida. Talvez, a mais presente seja a dificuldade de
interação com o outro.
Na verdade, a marca registrada do autista, mesmo
do muito inteligente, é a grande dificuldade do contato olho a olho. É óbvio que
essa característica também é encontrada em indivíduos tímidos, mas não no mesmo
grau. No autista, ela fica evidente na relação interpessoal, uma vez que ele é
socialmente mais recatado, mais isolado.
RITUAISO
autista de bom rendimento pode apresentar características de
genialidade?José Salomão Schwartzman - Costumo dizer que a
diferenciação entre o autista de bom rendimento e o gênio é muito pouco precisa.
Não pretendo fazer um diagnóstico à distância, mas há alguns exemplos que vale a
pena mencionar. Provavelmente, Mozart tinha um distúrbio de desenvolvimento que
é típico dos portadores da síndrome de Asperger. Ele compôs a primeira obra
importante aos cinco anos, o que é maravilhoso, mas não é normal. Além disso,
tinha enormes dificuldades de relacionamento. Seu casamento foi um desastre e
seu comportamento era absolutamente inadequado. Se analisarmos a vida de Santos
Dumont, veremos que era um indivíduo isolado, com pouquíssimo relacionamento
social e, como a maioria dos autistas, vestia sempre o mesmo tipo de roupa.
Aliás, os autistas costumam manter a rotina de forma absolutamente rígida.
Conheço alguns que usam a mesma calça jeans durante cinco anos.
Existe
alguma explicação para isso?José Salomão Schwartzman – Não sei se é
verdadeira, mas a explicação é que os rituais dos autistas existem para dar-lhes
a certeza de que o mundo não muda. Toda a mudança – mudar de roupa, mudar de
casa, mudar de escola – é um problema muito sério para eles. Às vezes, uma
criança autista quebra uma porção de coisas em casa aparentemente sem razão.
Quando se vai investigar, descobre-se que agiu assim ao dar-se conta de que um
objeto qualquer não estava no lugar de costume.
É preciso entender que o
cérebro dos autistas funciona de um modo completamente diferente.
Tenho
um menino de seis anos que aprendeu a ler sozinho e gosta muito de esporte.
Todos os dias, vai com o pai até a banca para comprar jornais. Ao chegar em
casa, separa as folhas de esporte, põe uma em cima da outra e arquiva-as. Se
alguém lhe perguntar sobre um jogo de futebol realizado anos antes, vai até o
arquivo, separa a reportagem e mostra-a para o interessado.
Na verdade,
parece que os autistas têm a tendência para querer que o mundo fique sempre
igual. Talvez isso explique por que as crianças repitam tanto alguns
comportamentos. Por exemplo, durante dois anos inteiros veem o vídeo da Branca
de Neve. É só o da Branca de Neve. Depois passam para o do Nemo e não querem
mudar. Às vezes, essa característica também se manifesta na alimentação. Existem
autistas que só comem um tipo de comida durante anos. Só sorvete, só arroz de
determinada marca. O interessante é que se a mãe muda de marca, embora a
qualidade seja a mesma, eles olham para o prato e percebem a
diferença.
CIRCUITARIA CEREBRALHá muita especulação
sobre as alterações na circuitaria cerebral dos autistas. O que acontece no
cérebro de uma criança que a faz comer arroz de uma determinada marca todos os
dias?José Salomão Schwartzman – Não chegamos ainda a esse nível de
detalhamento, mas parece que ocorre um defeito nos mecanismos que controlam a
morte dos neurônios. Ou seja, todos nascemos com mais neurônios do que vamos
utilizar durante a vida. No entanto, entre dois e quatro anos, 50% deles são
eliminados, porque para o sistema nervoso não têm mais serventia.
A
maioria das crianças autistas possui o perímetro encefálico maior do que as
crianças normais, diferença que desaparece depois dos quatro, cinco anos. Isso
sugere que no período em que deveria ter ocorrido a poda neuronal, algum defeito
em seu mecanismo prejudicou o processo.
Por essa razão talvez algumas
estruturas do sistema nervoso do autista têm tamanho diferente. Já se falou
muito no cerebelo, mas agora a suspeita recai sobre uma estrutura chamada
amígdala, que faz parte do sistema límbico e é maior nos indivíduos
autistas.
A amígdala é uma estrutura está envolvida no processamento
das emoções…José Salomão Schwartzman – Fundamentalmente envolvida e
tem muito a ver com a memória social. No Mackenzie, o professor Marcos
Mercadante, que trabalha com modelos animais, está fazendo uma experiência com
ratos, mostrando que, se provocarmos uma lesão em determinada parte da amígdala,
eles perdem a memória social. Claro que os ratos não se tornam autistas, mas
passam a manifestar sintomas característicos do transtorno. Existem também
evidências de que, com o passar do tempo, há uma redução no cérebro dos autistas
provocada por defeito na circuitaria e não por defeito anatômico.
O
problema está, então, em como os neurônios estabelecem sinapses uns com os
outros.José Salomão Schwartzman – Exatamente, está na maneira como
eles se comunicam. Nesse sentido é que cabe discutir o tratamento medicamentoso,
para modificar a ação dos
neurotransmissores.
TRATAMENTOQuando deve ser indicado
o tratamento medicamentoso para o autismo?José Salomão Schwatzman –
Autismo é uma condição crônica que não tem cura. Entretanto, quem tem um filho
autista corre atrás de qualquer tipo de recurso para tratamento.
Minha
conduta é que o autista não necessita obrigatoriamente de medicação. No entanto,
embora não exista remédio específico para autismo, existem alguns que ajudam a
controlar certos sintomas-alvo, como agressividade, hiperatividade, etc. Por
exemplo, os neurolépticos, drogas antipsicóticas usadas também na esquizofrenia,
são indicados para autistas com distúrbios de comportamento que os impeçam de
freqüentar escolas ou morar com a família. São remédios que não devem ser usados
por prazos longos, isto é, que só devem ser usados enquanto absolutamente
necessários.
Uma exceção à regra é a vitamina B6, apesar de não haver
evidências científicas a respeito. As primeiras tentativas foram feitas por
Bernard Rimland, psicólogo americano que tem um filho autista e defende que
doses elevadas dessa vitamina funcionam como precursor de neurotransmissores. A
experiência tem mostrado que alguns autistas, os portadores da síndrome de
Asperger inclusive, respondem bem ao uso da vitamina B6. Isso não significa que
os pais devam dá-la por conta própria aos filhos autistas, porque as doses
utilizadas podem determinar efeitos colaterais que são conhecidos e podem ser
controlados por um médico.
É importante mencionar também que a vitamina
B6 pode prevenir o aparecimento ou, pelo menos minimizar a depressão que
frequentemente acomete o autista adolescente. Aliás, é bom que se diga que
autista de bom rendimento tem predisposição para a depressão. Não se sabe se a
causa é endógena ou se é decorrente do fato de o indivíduo ser inteligente e,
portanto, capaz de perceber suas dificuldades e
limitações.
COMORBIDADENa fase da adolescência, quais
são os mais comuns distúrbios psiquiátricos associados ao espectro
autista?José Salomão Schwartzman – Depressão é um dos distúrbios
mais frequentes, mas existem associações com a síndrome de Tourette, com o
transtorno obsessivo-compulsivo (TOC) e o transtorno de ansiedade. É preciso
estar atento para as comorbidades, nome que se dá para a ocorrência de mais de
uma condição ao mesmo tempo, porque necessitam de tratamento
específico.
E mais: de 17% a 20% dos autistas são acometidos também por
epilepsia, um índice muito alto, especialmente se comparado com o da população
normal que é de 0,5% a 1%. Essa doença pode manifestar-se em qualquer idade e
exige atenção, principalmente porque não se exterioriza sob a forma tradicional
de uma convulsão típica, mas pode provocar crises psicomotoras marcadas por
episódios de ausência ou por uma série de movimentos automáticos. Esses sintomas
num indivíduo que já apresenta alguns distúrbios de comportamento, às vezes, são
muito difíceis de serem notados.
ORIENTAÇÃO AOS
PAISComo os pais devem comportar-se, quando o autista chega à
adolescência? Existe alguma possibilidade de diálogo, de entendimento
racional?José Salomão Schwartzman – Com o autista inteligente,
portador da síndrome de Asperger, existe. Esses indivíduos são sensíveis a
terapias verbais. Todavia, elas não podem ser consideradas a única forma de
tratamento, como era no início, quando se achava que a causa do autismo era uma
relação inadequada entre a mãe e o filho.
Portanto, um caso de Asperger
verbal em que haja alguma vida interior pode beneficiar-se com essas formas de
terapia, desde que o terapeuta conheça bem o tipo de dificuldade de compreensão
do autista. Se souber, é provável que a comunicação se estabeleça.
Essa
regra vale também para a família. Por isso, os pais precisam receber todas as
informações a respeito do filho e das dificuldades de compreensão que tem. Se
não for assim, como lidar com o filho de 18 anos que não entende metáforas e se
esconde debaixo da mesa quando o pai olha o céu e diz que vai chover
canivete?
Tenho um menino de 8 anos que pôs fogo no porão da casa. Quando
viu a fumaça, saiu correndo, mas cruzou com o pai que lhe falou: “Muito bem,
veja só o que você fez”. Passada a confusão, o menino perguntou-lhe se havia
gostado do que tinha feito. O pai disse que não, pois ele poderia ter acabado
com a casa. “Por que você falou muito bem, então?”, indagou o garoto. O pai que
estava bem a par da dificuldade do filho explicou-lhe que, em português, a
expressão “muito bem” pode significar tanto “muito bem”, quanto “muito
mal”.
Meses mais tarde, esse garoto foi ao consultório e eu lhe pedi que
fizesse um desenho. Era a época do desastre de 11 de setembro, e ele desenhou as
duas torres e os aviões. Quando me mostrou o que havia feito, eu disse “Muito
bem, João”. Ao ouvir essas palavras, ele se levantou, pôs as mãos na cintura e
quis saber à qual muito bem eu estava me referindo. Sua pergunta mostra que ele
sabe que a expressão admite mais de um sentido, mas não a
contextualiza.
Dá para imagine a confusão que se estabelece com os pais,
com o professor quando uma pessoa inteligente reage dessa maneira e eles não
estão suficientemente informados sobre a forma de agir nessas
situações?
Os pais precisam saber também que, se o filho só demonstra
interesse por dinossauros, não é conveniente oferecer-lhe tudo o que existe a
respeito do assunto para não reforçar uma condição que é, acima de tudo,
patológica.
Frequentemente pais de autistas necessitam de aconselhamento
psicológico, não porque sejam causadores do problema, mas porque precisam
aprender como lidar melhor com o filho, e a escola também deve ser instruída
sobre o modo de proceder com esses alunos.
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