Autistas em cativeiro
Sem saber como lidar com filhos sofrendo de autismo severo, famílias optam por uma solução medieval: prendê-los a correntes
A janela do quarto de Alexsandre Borges da Silva, de 18 anos, dá para dentro da casa simples de Sapeaçu, no interior da Bahia. É um vão aberto para o corredor que leva da sala à cozinha. “Quando o dinheiro der, vamos colocar uma grade”, diz o padrasto Cosme Nogueira da Silva, enquanto com as mãos desenha barras de ferro no vazio.
Por todo o Brasil, no século XXI, autistas como Alexsandre ainda recebem tratamento semelhante ao que os deficientes mentais recebiam na Idade Média. Naquela época, era comum eles viverem como animais. Presos em jaulas, não recebiam educação, eram alimentados por entre as grades, faziam as necessidades no chão.
Hoje, quase todo médico, professor ou terapeuta da área de distúrbios do desenvolvimento, categoria na qual o autismo se enquadra, sabe de um portador da síndrome que passa longos períodos amarrado à cama, preso em um quarto minúsculo, fechado atrás de um portão de ferro. Por que, então, eles não denunciam esses casos à polícia? A resposta é sempre a mesma: as famílias também são vítimas. Os pais só trancam os filhos em “jaulas” quando eles representam um perigo para os outros ou para si mesmos e não há onde colocá-los.
As autoridades não ignoram o problema. “O governador (Jaques Wagner) conhece o caso dos meninos presos”, diz Junior Magalhães, deputado estadual (DEM) e relator do projeto que deu origem à lei baiana do autismo, a primeira lei estadual no Brasil a tratar da questão de forma ampla. A lei afirma que é obrigação do Estado manter unidades para o atendimento integrado de saúde e educação. Diz que o Estado da Bahia tem de arcar com tratamentos especializados como fonoaudiologia, psicoterapia comportamental, fisioterapia – e, em casos graves, a internação em unidades especializadas. Mas ainda não está sendo amplamente aplicada.
Provocado por uma alteração no desenvolvimento do cérebro durante a primeira infância, o autismo se caracteriza principalmente por inabilidade social, dificuldade com a linguagem e hábitos repetitivos. Tem vários graus de gravidade e está relacionado a uma grande variedade de outros sintomas e alterações de comportamento. Sem a educação e o tratamento adequados, alguns autistas passam a agredir a si mesmos e, em alguns casos, a agredir outras pessoas. O autismo não tem “cura”. Mas o tratamento melhora a qualidade de vida, o grau de independência e a sociabilidade.
O problema é que a maioria dos autistas, assim como Alexsandre, recebe tratamento aquém de suas necessidades. No dia em que a reportagem de ÉPOCA visitou Sapeaçu, Alexsandre chegou à sala trazido pelo padrasto. Encurvado, se arrastava. Tinha a cabeça levemente jogada para trás e os olhos perdidos no teto. Os dentes batiam de frio. Os olhos se mexiam – de um lado para outro, sem parar. “Ele está impregnado”, disse Rita Brasil, presidente da Associação dos Amigos do Autista da Bahia, que acompanhava a visita. Na linguagem própria de pais de autistas, impregnado quer dizer dopado.
O autismo de Alexsandre foi diagnosticado aos 4 anos. Seu tratamento começou tarde. Hoje, Alexsandre faz fisioterapia e freqüenta a escola especial da Fundação Pestalozzi de Sapeaçu, por meio período, duas vezes por semana. Se está agitado demais, fica trancado em seu quarto.
Em alguns casos, vizinhos que ficam sabendo de um autista preso chamam a polícia. A criança é tirada dos pais e depois devolvida, diz Angélica Menezes, jornalista, diretora da Associação Baiana de Autismo e mãe de Ygor Felipe, um autista hoje com 22 anos. “Nenhuma instituição pública está preparada para receber um autista de grau severo”, afirma. Angélica chegou a vedar a porta do quarto de Ygor. “Tinha épocas em que eu ficava dias sem entrar, senão ele me surrava. Havia até fezes na parede do quarto.” Entre outros episódios, Ygor tentou se atirar do 7o andar de um prédio em Salvador, quebrou o nariz e um dente da mãe e empurrou escada abaixo a irmã, grávida. Angélica entrou com uma ação judicial pedindo que o governo da Bahia cubra os R$ 2.800 de custos da internação de Ygor em uma clínica particular. Também está reunindo a documentação de cerca de 50 famílias para mover uma ação civil pública para exigir que o governo da Bahia cumpra a lei promulgada em março de 2007 e ofereça (ou pague) tratamento para os autistas. “Faz um ano que a lei foi aprovada, e, até agora, eles não nos deram nada”, afirma Angélica.
“A coisa está andando na velocidade possível”, diz Regina Atalla, coordenadora de Defesa dos Direitos da Pessoa com Deficiência da Secretaria de Justiça, Cidadania e Direitos Humanos da Bahia. “O orçamento do ano passado tinha sido votado pelo governo anterior antes da aprovação da lei.” Regina também atribui a questões orçamentárias a resistência do governo em aceitar a Lei do Autismo.
Aprovada por maioria absoluta em dezembro de 2006, em janeiro seguinte, a lei recebeu o veto do recém-empossado Jaques Wagner. Em março de 2007, a Assembléia dos Deputados da Bahia derrubou o veto do governador – a primeira vez em 58 anos. Wagner, então, se recusou a sancionar a lei, que acabou promulgada pela Assembléia. Em uma entrevista, o governador alegou que muitas leis não são cumpridas. Além da Bahia, a cidade do Rio de Janeiro tem uma lei de proteção ao autista, mas também não se vêem s resultados práticos. “No Rio também há crianças enjauladas”, diz o vereador Márcio Pacheco (PSC), autor do projeto da lei do autismo carioca.
Não são só os autistas que vivem em cárcere privado. Muitos familiares ficam literalmente presos. Vera Xavier, de 46 anos, é uma mulher com medo. Quando fala sobre o filho, Marco Antonio Xavier, de 23 anos, seus olhos ficam marejados. Vera diz que sempre apanha de Marco, um rapaz alto e forte que circula pela casa da periferia de Salvador só de cueca. Na véspera da visita da reportagem de ÉPOCA, ele havia dado um soco no rosto da mãe. “Estou com medo de entrar em casa”, diz Vera, chorando. “Vou chamar meu marido.” Mas Adelmo Rodrigues Xavier, de 49 anos, gerente de um mercadinho perto de casa, também parece assustado diante do rapaz. “Tenho medo por ela”, afirma. “Eu não o enfrento. Ela enfrenta. Qualquer dia ele a machuca feio.” Quando Marco começa a bater em Vera, ninguém pode falar nada, senão apanha também. A solução é Vera se trancar no quarto e esperar o rapaz se acalmar.
Vera e Adelmo fazem parte de um grupo que pretende acionar o Estado para que se faça cumprir a lei. Em São Paulo, alguns pais já recebem reembolso do governo pelos gastos que têm com seus filhos. Teoricamente, basta procurar a Secretaria de Saúde do Estado e entrar com um requerimento. Na prática, é preciso acionar a Justiça para que isso aconteça. A vitória é quase certa, porque a Justiça paulista já deliberou sobre o assunto: no ano 2000, concedeu à faxineira Normaci Sampaio o direito de internar o filho Antonio Celso Sampaio da Conceição em uma clínica particular à custa do Estado. Em seguida, deu ganho de causa a um grupo de pais que moveu uma ação civil pública. São Paulo não tem uma lei do autismo. As ações se basearam na Constituição, que garante direito a atendimento de saúde.
Estelita de Souza, de 58 anos, a filha Rosângela, de 31, e a neta Bárbara, de 12, nem sequer sabem que podem acionar a Justiça. Estelita conta que Rosângela, autista, foi estuprada e teve uma filha, Bárbara, também autista. “Elas não fazem nada sozinhas”, diz Estelita, com um sorriso calmo. “Eu dou banho nelas, troco elas. Sujam o chão, a cama, até a parede. A Bárbara é mais agitada, morde, às vezes me bate. Mas fazer o quê? É a vontade de Deus.” Casos como o de Estelita mostram quanto ainda é preciso fazer pelas famílias de autistas.
FONTE: REVISTA ÉPOCA
fonte: http://diganaoaerotizacaoinfantil.wordpress.com/2008/05/03/autistas-em-cativeiro/
fonte: http://diganaoaerotizacaoinfantil.wordpress.com/2008/05/03/autistas-em-cativeiro/
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