O cérebro no autismo
Edição Impressa 184 - Junho 2011
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© Marie Hippenmeyer | fotos da série Preto e Branco, 2002-2007 |
Anos atrás Maria Cristina Kupfer tentou criar uma ponte com os pediatras e auxiliar no trabalho de detecção do autismo. Embora a psicanálise não use protocolos de identificação como os da psiquiatria, um grupo de nove especialistas coordenado por ela desenvolveu em 1999, com apoio da FAPESP, uma série de 31 indicadores para a detecção precoce de risco para o desenvolvimento psíquico: o protocolo IRDI. Esse material, elaborado a pedido da pediatra Josenilda Brant, consultora da área de saúde da criança do Ministério da Saúde, deveria integrar o Manual para o acompanhamento do crescimento e desenvolvimento, que o ministério distribui aos médicos da rede pública.
Pediatras de 11 centros de saúde de nove cidades brasileiras aplicaram os indicadores a 726 crianças de até 1 ano e meio de idade. Apresentados em 2009 no Latin American Journal of Fundamental Psychopathology Online, os resultados mostraram que 15 desses indicadores – eles avaliavam interações simples como mãe e bebê trocam olhares ou a criança reage (sorri, vocaliza) quando a mãe ou outra pessoa se dirige a ela – eram capazes de predizer, a partir do sexto mês de vida, se havia risco de desenvolvimento de problemas psíquicos. “Os indicadores do protocolo IRDI, adaptados, chegaram a fazer parte da Caderneta da Saúde da Criança, destinada a orientar os pais, em 2006, 2007 e 2008 e depois foram retirados”, conta Maria Cristina. “Mas os indicadores validados pela pesquisa não foram integrados à ficha de acompanhamento do desenvolvimento, usada pelos pediatras nas consultas feitas no sistema público de saúde.”
Apesar do revés, Maria Cristina não se acomodou. “Se fecharam uma porta, procuramos outra”, diz a psicanalista, que planeja testar seus indicadores em 29 creches do bairro paulistano do Butantã. “O uso dessa ferramenta em creches é uma alternativa interessante, porque as crianças passam oito horas por dia ali e têm muito mais contato com os professores do que com os pediatras”, justifica.
Foi como problema de contato afetivo, aliás, que os primeiros casos do que viria a ser conhecido como autismo foram descritos pelo austríaco Leo Kanner, psiquiatra do Hospital Johns Hopkins, nos Estados Unidos. Em outubro de 1938, Kanner examinou um garoto norte-americano chamado Donald Gray Triplett, do Missouri, que desde muito cedo demonstrava dificuldade de interagir com pessoas ao mesmo tempo que tinha fixação por certos objetos e grande capacidade de memorização. Embora os sinais lembrassem o de um problema psiquiátrico grave, a esquizofrenia, Kanner não conseguiu fechar o diagnóstico de imediato. Nos anos seguintes, ele reuniu outros nove casos semelhantes e os apresentou em um artigo de 1943 intitulado “Autistic disturbances of affective contact”. No texto Kanner tomou emprestado o termo autismo, usado para descrever o distanciamento e o ensimesmamento típicos da esquizofrenia. Um ano mais tarde outro psiquiatra de origem austríaca, Hans Asperger, descreveria casos um pouco distintos. Eram crianças com inteligência e capacidade de aprendizado de linguagem normais, mas com dificuldade de interagir socialmente – sinais que se tornam característicos da síndrome de Asperger, um dos transtornos do espectro autista.
Enquanto Asperger acreditava na origem biológica desses distúrbios, Kanner os via como problemas com causas psíquicas, resultado da criação por pais frios e distantes. Por influência de pesquisadores como o psicólogo Bruno Bettelheim, esta visão prevaleceu por anos e se tornou conhecida como a “teoria da mãe geladeira”. “Toda uma geração de pais – particularmente as mães – foi levada a se sentir culpada pelo autismo dos filhos”, escreve o neurologista inglês Oliver Sacks no livro Um antropólogo em Marte, publicado no Brasil pela Companhia das Letras.
Esse peso só seria tirado dos ombros dos pais nos anos 1960, quando começaram a surgir evidências favorecendo a ideia de que alterações no sistema nervoso central estariam por trás do autismo. Mas levaria algum tempo para a visão biológica ganhar força. O primeiro grupo a identificar o funcionamento anormal no cérebro de crianças autistas foi o da médica brasileira Monica Zilbovicius, pesquisadora do Instituto Nacional da Saúde e da Pesquisa Médica (Inserm) da França. Usando um aparelho de tomografia por emissão de pósitrons, que mede o fluxo sanguíneo e, portanto, o nível de atividade de diferentes regiões do sistema nervoso central, Monica analisou o cérebro de 21 garotos com autismo e 10 sem o problema – o autismo é quatro vezes mais comum em meninos do que em meninas.
Ela verificou que as crianças do primeiro grupo apresentavam atividade reduzida no sulco temporal superior, pequena área do lobo temporal, segundo resultados apresentados em 2000 no American Journal of Psychiatry. “Quatro grupos haviam tentado antes de nós, mas não encontraram nada”, conta Monica. “Naquela época, nem sabíamos qual era a função dessa área no cérebro normal.” Além de menos ativo, o córtex do sulco temporal superior, situado na região das têmporas, logo acima das orelhas, era menos espesso.
Inicialmente se acreditava que o lobo temporal fosse importante apenas para a percepção dos sons. Estudos mais detalhados mostraram, porém, que tanto o sulco temporal superior como outra área do lobo temporal, o giro fusiforme, estavam envolvidos no processamento de dois tipos de informações relevantes para as interações sociais. Eles captam informações auditivas, sobre a voz do interlocutor, e visuais, como os movimentos dos olhos, os gestos e as expressões faciais, processam-nas e as distribuem para outras áreas cerebrais associadas às emoções e ao raciocínio lógico.
É o funcionamento adequado dessas áreas que permite conhecer a intenção e a disposição da pessoa com quem se interage. Quando uma das áreas está alterada, a percepção de informações tanto visuais quanto auditivas é deficiente, como no caso do garoto que não conseguia perceber a intenção maldosa na voz do Capitão Gancho. Essas descobertas levaram Monica a propor em 2006 que modificações nessas regiões do cérebro durante o desenvolvimento seriam responsáveis pelo sintoma mais frequente do autismo: a dificuldade de interação social.
Ao mesmo tempo que se mapeavam algumas das regiões cerebrais envolvidas no autismo, outro pesquisador brasileiro, o psicólogo Ami Klin, começava a identificar por que as crianças com o distúrbio falhavam em perceber informações importantes para a interação com outras pessoas. Durante o doutorado em psicologia na London School of Economics, Klin criou um experimento simples que permitiu constatar que os bebês com autismo têm uma reação anormal ao ouvir vozes. Ele próprio criou um aparelho com dois botões – um reproduzia uma gravação da voz materna e o outro, a de uma mistura de vozes – e o apresentou a bebês com menos de 1 ano. Na maioria das vezes, as crianças saudáveis acionavam o botão que permitia ouvir a voz da mãe. Já as com autismo não mostraram preferência: apertavam ambos indistintamente. Na Universidade Yale, nos Estados Unidos, onde dirigiu um programa de estudos sobre autismo, Klin passou a usar uma técnica que permite rastrear o movimento dos olhos a fim de verificar onde quem tem autismo focava a visão no contato com outras pessoas. “Se quisermos de fato compreender o que passa pela cabeça deles, precisamos ver o mundo pelos olhos deles”, disse Klin, hoje pesquisador da Universidade Emory, em uma entrevista anos atrás.
Num teste com adolescentes saudáveis e autistas, ele constatou que, na maior parte do tempo, os primeiros dirigiam a atenção para os olhos do interlocutor, padrão que os seres humanos e outros grandes primatas desenvolvem nas primeiras semanas de vida – e teria importância evolutiva por permitir distinguir os membros da mesma espécie (e suas intenções) dos predadores. Os autistas focavam o olhar ao redor da boca ou nos cabelos, áreas que não fornecem informações relevantes sobre o contexto social. No autismo, aparentemente, a capacidade de buscar essas pistas sociais se perderia bem cedo na vida, como demonstrou Klin ao repetir o experimento com crianças de 2 anos. “É provável que, por esse motivo, as pessoas com autismo não consigam decifrar a expressão do rosto do outro nem demonstrar expressões adequadas às situações sociais”, comenta Monica.
É consenso hoje que a formação inadequada das redes neuronais ligadas à percepção e ao processamento das informações sociais – o chamado cérebro social – se deve a defeitos nos genes. “Acredita-se que o autismo tenha origem genética importante e que a manifestação do problema dependa predominantemente da constituição genética do indivíduo”, comenta Maria Rita Passos Bueno, geneticista da USP que investiga o distúrbio.
Até o momento alterações em mais de 200 genes, distribuídos por quase todos os cromossomos humanos, já foram associadas ao autismo. Defeitos em um pequeno número (10%) desses genes, porém, aparentemente explicam por completo o problema. Apesar de haver certo padrão entre os sinais clínicos, do ponto de vista genético cada paciente parece ter uma forma de autismo própria, segundo Maria Rita. Seu grupo na USP, que em 2009 descreveu alterações nos genes de dois receptores do neurotransmissor serotonina, desenvolveu um chip de DNA para procurar pequenas alterações em 250 genes responsáveis pelas conexões entre os neurônios em 500 crianças com autismo, a maioria diagnosticada pela equipe do psiquiatra Estevão Vadasz. Das 70 crianças já testadas por Cíntia Marques Ribeiro, 20% têm defeitos em ao menos um desses genes.
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