Nascemos não apenas incompletos, incapazes. Nascemos também desmembrados, dilacerados. Até os seis meses de idade, não temos consciência do nosso próprio corpo, não reconhecemos nossos braços ou nossas pernas como sendo partes de nós. Diante de um espelho – ensinava Lacan – não somos capazes de ver nossos membros colados ao nosso corpo. Essa consciência só ganha substância quando construímos o Ego, o Eu.
Nos primeiros meses de vida, somos completamente Id. Nem Ego, nem Superego passam pelo nosso berço. Vivemos o início da nossa fase oral mergulhados no princípio do prazer, sem preocupação alguma com a preservação da natureza, as contas que vão vencer, a ameaça de desemprego. Apenas nos interessam aquelas coisas enormes e redondas, cheias de leite e de amor.
Quem faz a cola das nossas partes, conseqüentemente o nascimento do Eu é a relação afetiva que temos com nossa mãe, os olhares cruzados, os carinhos, os cuidados. Um dia, começamos a desconfiar que, talvez, aquela parte do corpo faça parte de um todo. Afinal, quando a mamãe beijou, deu uma sensação gostosa.
Piaget batizou essa procura nossa por partes de nós mesmos de reação circular primária. Talvez estivesse enganado: se aquele pé não é parte de nós, então não estamos interagindo conosco, mas com algo fora de nós. À interação com objetos externos ao nosso corpo, ele chamou reação circular secundária. A próxima, a terciária, corresponde à interação da criança com outras pessoas.
Piaget construiu sua epistemologia genética observando seus três filhos, e fez um trabalho monumental e correto. Demonstrou como se constrói o conhecimento, as fases em que acontece cada aquisição. Sempre faço a seguinte provocação: como seria a epistemologia de Piaget se seus filhos fossem autistas?
Voltemos ao espelho, preciso parar de divagar. Uma criança autista não consegue a interação adequada com sua mãe. Confrontada com a dificuldade, às vezes impossibilidade, a mãe desiste, se adéqua à situação desconhecida. Tenta fazer a ligação com ele, mas não é correspondida. Acaba se culpando (não pode ser culpa de um bebê tão pequeno!) e, na reparação da culpa, dá o que o bebê pede, deixa que ele se relacione como ele consegue se relacionar. E o vínculo não se faz.
Dois hormônios agem sobre a amamentação, ambos produzidos na hipófise. O primeiro é responsável pela produção do leite, e começa a ser produzido assim que o bebê nasce. O outro, chamado oxitocina, age abrindo as glândulas mamárias para que o leite possa sair. Este segundo hormônio começa a ser produzido por um comando que é acionado pelo olhar mãe-bebê: quando os olhos se cruzam, o vínculo afetivo é iniciado, o cérebro entende que é hora de mamar, e manda produzir a oxitocina. Se o vínculo não se forma, o ato de amamentar fica doloroso para os dois, o bebê vai desistindo e o leite vai rareando, para não prejudicar o seio.
Ao crescerem, autistas se tornam super ativos: andam, giram, não param, às vezes se machucam, ou tentam, caminham, parece que não querem parar. E têm o andar desajeitado, algum desajustamento na coordenação motora. Cresceram sem ter construído o Eu, pela dificuldade de juntar os membros ao corpo. Isso ajuda a construção de um Superego forte, concreto: ao contrário da descrição de certos autores, de que um autista parece um jovem adulto, na verdade eles são superego puro.
Vamos emprestar termos da Análise Transacional, de Berne: consideremos o Id como sendo a criança, amoral, sem senso do perigo, vive pelo sentido do prazer. O Superego é o pai, a lei e a ordem, as regras sociais que nos regem e a possibilidade de castigos, se não as seguimos. O Ego é o adulto, aquele que negocia entre os primeiros dois, ambos radicais, para que possamos ter prazer sem descumprir as leis.
Ora, você vai concordar comigo que a existência do Ego depende da existência dos outros dois: como negociar entre eles, se um deles não existe? Esse é o ponto, tão fácil de entender quanto difícil de concretizar. Vamos a um exemplo prático: um Down, geralmente, é preferencialmente Id, ao longo da sua vida. Tem prazer em viver, não ganha responsabilidade, não dá a mínima para o Superego, quer que se exploda. Não constrói um Ego razoável. Em conseqüência disso, não adquire comportamento adulto. Um autista é Superego: responsável, ordeiro, organizado, metódico, de poucas palavras, respeitador incondicional de regras. Não tem um Id, não constrói um Ego. Em conseqüência disso, sofre, tem dificuldades sociais com outras crianças e se isola.
Muito bem: durante alguns poucos anos, assumi a tarefa de construir um Id no meu filho. Ensiná-lo a ser menos metódico, menos ordeiro, mas bagunceiro, brincar mais, deixar de respeitar certas ordens, às vezes, ser malcriado com o pai, desobedecer de vez em quando. Em parte, consegui, ele foi adquirindo o lado criança, i Id aflorou, foi-se instalando. Como conseqüência, o Ego foi-se formando, está-se formando, e ele já é capaz de analisar, hoje, que pode brincar ou ver o filme em vez de arrumar tudo no lugar, e que pode, às vezes, deixar a lição para o dia seguinte, se o desenho da televisão está legal.
Exemplo de Ego: às vezes estou deitado no sofá, vendo algo na TV, ele chega de fininho e solta um pum perto de mim. Chama de pum tóxico. Gargalha tão gostoso que não dá para sentir a toxicidade dos gases. Mas faz só perto de mim, não faz perto de ninguém mais. Outro: faz desenhos nas paredes e na porta do quarto dele, com recados para mim. Mas só no quarto dele, em mais nenhum lugar.
Tente adivinhar, agora, como é difícil a minha tarefa de convencer mães, pais, avós, professores, profissionais, de que, para o bem da criança, devem abdicar da delícia de ter um menino de sete anos que é a filha adolescente que sempre quisemos ter, calada, organizada, educada; de ter que abandonar conceitos de gerações de que devemos ensinar Superego aos nossos filhos; de ter que se reprogramar para educar ao contrário. Além do trabalho que dá ajudá-lo na construção do Id, depois vem o trabalho de chamar a atenção dele por ações que ele não fazia e nós ensinamos a fazer. Não é louco?
Quem foi que disse que viver não é insano?
Considere esse sistema como uma balança de ourives, dois pratos tendo que ser equilibrados. Num prato, os desejos exigidos pelo ID; no outro, as repressões do Superego. Considere agora que nossa educação exige que reprimamos os desejos inconvenientes. A cada desejo num prato, uma repressão no outro. Nosso Ego tem que manter o equilíbrio. Aí vem outro desejo, desequilibra a balança, outra repressão para equilibrar. Mais um, lá vem outra. Vivemos equilibrados, como nos ensinaram.
Um dia, chegamos ao consultório do psiquiatra, do psicólogo, desesperados: nossa balança quebrou. Excesso de peso. E passamos anos em terapia tentando entender porque aconteceu isso conosco, se fizemos tudo certo. Fizemos? Até que entendemos, às vezes tarde demais, que podíamos ter equilibrado a balança de outra maneira, simplesmente tirando, realizando, satisfazendo um desejo. Mesmo que isso nos custe uns gramas a mais no peso, uma despesa a mais de táxi, umas horas a mais num motel.
Preocupados em ensinar regras e leis, em construir um poderoso Superego, em fazer adultos nossos filhos, esquecemos de ensiná-los a se manterem crianças eternamente. Não lhes damos o equilíbrio necessário, porque forçamos mais o Superego e abafamos mais o Id. Não lhes oferecemos a oportunidade de um Ego verdadeiramente adulto, porque confundimos a noção de pai com a noção de adulto, que na verdade não têm nada a ver entre si.
Incentivando o Id de uma criança autista, fazemos o que a mãe não conseguiu, porque o bebê não permitiu: amalgamamos seu todo, damos-lhe condições de construção de um Ego que, esse sim, é de sua inteira responsabilidade. E o desenvolvimento da criança é não só observável em pouco tempo: é comovente.
Ajudo mães e professoras a construir uma planilha de avaliação diária, que é transformada em gráficos trimestrais, que dão a visão clara do desenvolvimento da criança, da construção do Id, da consolidação do Superego e do desenvolvimento do Ego. Como você já deve ter adivinhado, esse é um assunto para nosso próximo encontro.
Não se trata de sadismo, embora eu tenha praticado bastante a construção de um Id, e me sinta especialmente tentado a praticá-lo em você. É que preciso manter sua atenção, preciso que você reflita sobre o que lhe digo, que busque contrapontos, questione, pergunte. Sem essa sua ajuda, meu trabalho estaciona, e eu preciso trabalhar.
Até à próxima, então. Aproveite a folga para se olhar no espelho à maneira de Lacan, e imagine como você seria se houvesse um espaço sem ligação entre seu tronco e seus braços, entre seu tronco e suas pernas, entre seu pescoço e sua cabeça. Angustie-se até não poder mais com essa visão, não economize sentimentos. Se puder, cole pedaços de papel negro no espelho, para possibilitar essa visão. Sinta ao máximo a sensação de ser esfacelado.
Para compreender alguém, temos que nos colocar no seu lugar, viver o que ele vive, sentir o que ele sente, andar como ele anda, chorar como ele chora. Em todas as oficinas que promovo, gasto a primeira hora para transformar todos os participantes em autistas por um dia. Só falando chinês você compreende o que os chineses dizem. Se você quiser ajudar, tem que aprender autistês.
Nos primeiros meses de vida, somos completamente Id. Nem Ego, nem Superego passam pelo nosso berço. Vivemos o início da nossa fase oral mergulhados no princípio do prazer, sem preocupação alguma com a preservação da natureza, as contas que vão vencer, a ameaça de desemprego. Apenas nos interessam aquelas coisas enormes e redondas, cheias de leite e de amor.
Quem faz a cola das nossas partes, conseqüentemente o nascimento do Eu é a relação afetiva que temos com nossa mãe, os olhares cruzados, os carinhos, os cuidados. Um dia, começamos a desconfiar que, talvez, aquela parte do corpo faça parte de um todo. Afinal, quando a mamãe beijou, deu uma sensação gostosa.
Piaget batizou essa procura nossa por partes de nós mesmos de reação circular primária. Talvez estivesse enganado: se aquele pé não é parte de nós, então não estamos interagindo conosco, mas com algo fora de nós. À interação com objetos externos ao nosso corpo, ele chamou reação circular secundária. A próxima, a terciária, corresponde à interação da criança com outras pessoas.
Piaget construiu sua epistemologia genética observando seus três filhos, e fez um trabalho monumental e correto. Demonstrou como se constrói o conhecimento, as fases em que acontece cada aquisição. Sempre faço a seguinte provocação: como seria a epistemologia de Piaget se seus filhos fossem autistas?
Voltemos ao espelho, preciso parar de divagar. Uma criança autista não consegue a interação adequada com sua mãe. Confrontada com a dificuldade, às vezes impossibilidade, a mãe desiste, se adéqua à situação desconhecida. Tenta fazer a ligação com ele, mas não é correspondida. Acaba se culpando (não pode ser culpa de um bebê tão pequeno!) e, na reparação da culpa, dá o que o bebê pede, deixa que ele se relacione como ele consegue se relacionar. E o vínculo não se faz.
Dois hormônios agem sobre a amamentação, ambos produzidos na hipófise. O primeiro é responsável pela produção do leite, e começa a ser produzido assim que o bebê nasce. O outro, chamado oxitocina, age abrindo as glândulas mamárias para que o leite possa sair. Este segundo hormônio começa a ser produzido por um comando que é acionado pelo olhar mãe-bebê: quando os olhos se cruzam, o vínculo afetivo é iniciado, o cérebro entende que é hora de mamar, e manda produzir a oxitocina. Se o vínculo não se forma, o ato de amamentar fica doloroso para os dois, o bebê vai desistindo e o leite vai rareando, para não prejudicar o seio.
Ao crescerem, autistas se tornam super ativos: andam, giram, não param, às vezes se machucam, ou tentam, caminham, parece que não querem parar. E têm o andar desajeitado, algum desajustamento na coordenação motora. Cresceram sem ter construído o Eu, pela dificuldade de juntar os membros ao corpo. Isso ajuda a construção de um Superego forte, concreto: ao contrário da descrição de certos autores, de que um autista parece um jovem adulto, na verdade eles são superego puro.
Vamos emprestar termos da Análise Transacional, de Berne: consideremos o Id como sendo a criança, amoral, sem senso do perigo, vive pelo sentido do prazer. O Superego é o pai, a lei e a ordem, as regras sociais que nos regem e a possibilidade de castigos, se não as seguimos. O Ego é o adulto, aquele que negocia entre os primeiros dois, ambos radicais, para que possamos ter prazer sem descumprir as leis.
Ora, você vai concordar comigo que a existência do Ego depende da existência dos outros dois: como negociar entre eles, se um deles não existe? Esse é o ponto, tão fácil de entender quanto difícil de concretizar. Vamos a um exemplo prático: um Down, geralmente, é preferencialmente Id, ao longo da sua vida. Tem prazer em viver, não ganha responsabilidade, não dá a mínima para o Superego, quer que se exploda. Não constrói um Ego razoável. Em conseqüência disso, não adquire comportamento adulto. Um autista é Superego: responsável, ordeiro, organizado, metódico, de poucas palavras, respeitador incondicional de regras. Não tem um Id, não constrói um Ego. Em conseqüência disso, sofre, tem dificuldades sociais com outras crianças e se isola.
Muito bem: durante alguns poucos anos, assumi a tarefa de construir um Id no meu filho. Ensiná-lo a ser menos metódico, menos ordeiro, mas bagunceiro, brincar mais, deixar de respeitar certas ordens, às vezes, ser malcriado com o pai, desobedecer de vez em quando. Em parte, consegui, ele foi adquirindo o lado criança, i Id aflorou, foi-se instalando. Como conseqüência, o Ego foi-se formando, está-se formando, e ele já é capaz de analisar, hoje, que pode brincar ou ver o filme em vez de arrumar tudo no lugar, e que pode, às vezes, deixar a lição para o dia seguinte, se o desenho da televisão está legal.
Exemplo de Ego: às vezes estou deitado no sofá, vendo algo na TV, ele chega de fininho e solta um pum perto de mim. Chama de pum tóxico. Gargalha tão gostoso que não dá para sentir a toxicidade dos gases. Mas faz só perto de mim, não faz perto de ninguém mais. Outro: faz desenhos nas paredes e na porta do quarto dele, com recados para mim. Mas só no quarto dele, em mais nenhum lugar.
Tente adivinhar, agora, como é difícil a minha tarefa de convencer mães, pais, avós, professores, profissionais, de que, para o bem da criança, devem abdicar da delícia de ter um menino de sete anos que é a filha adolescente que sempre quisemos ter, calada, organizada, educada; de ter que abandonar conceitos de gerações de que devemos ensinar Superego aos nossos filhos; de ter que se reprogramar para educar ao contrário. Além do trabalho que dá ajudá-lo na construção do Id, depois vem o trabalho de chamar a atenção dele por ações que ele não fazia e nós ensinamos a fazer. Não é louco?
Quem foi que disse que viver não é insano?
Considere esse sistema como uma balança de ourives, dois pratos tendo que ser equilibrados. Num prato, os desejos exigidos pelo ID; no outro, as repressões do Superego. Considere agora que nossa educação exige que reprimamos os desejos inconvenientes. A cada desejo num prato, uma repressão no outro. Nosso Ego tem que manter o equilíbrio. Aí vem outro desejo, desequilibra a balança, outra repressão para equilibrar. Mais um, lá vem outra. Vivemos equilibrados, como nos ensinaram.
Um dia, chegamos ao consultório do psiquiatra, do psicólogo, desesperados: nossa balança quebrou. Excesso de peso. E passamos anos em terapia tentando entender porque aconteceu isso conosco, se fizemos tudo certo. Fizemos? Até que entendemos, às vezes tarde demais, que podíamos ter equilibrado a balança de outra maneira, simplesmente tirando, realizando, satisfazendo um desejo. Mesmo que isso nos custe uns gramas a mais no peso, uma despesa a mais de táxi, umas horas a mais num motel.
Preocupados em ensinar regras e leis, em construir um poderoso Superego, em fazer adultos nossos filhos, esquecemos de ensiná-los a se manterem crianças eternamente. Não lhes damos o equilíbrio necessário, porque forçamos mais o Superego e abafamos mais o Id. Não lhes oferecemos a oportunidade de um Ego verdadeiramente adulto, porque confundimos a noção de pai com a noção de adulto, que na verdade não têm nada a ver entre si.
Incentivando o Id de uma criança autista, fazemos o que a mãe não conseguiu, porque o bebê não permitiu: amalgamamos seu todo, damos-lhe condições de construção de um Ego que, esse sim, é de sua inteira responsabilidade. E o desenvolvimento da criança é não só observável em pouco tempo: é comovente.
Ajudo mães e professoras a construir uma planilha de avaliação diária, que é transformada em gráficos trimestrais, que dão a visão clara do desenvolvimento da criança, da construção do Id, da consolidação do Superego e do desenvolvimento do Ego. Como você já deve ter adivinhado, esse é um assunto para nosso próximo encontro.
Não se trata de sadismo, embora eu tenha praticado bastante a construção de um Id, e me sinta especialmente tentado a praticá-lo em você. É que preciso manter sua atenção, preciso que você reflita sobre o que lhe digo, que busque contrapontos, questione, pergunte. Sem essa sua ajuda, meu trabalho estaciona, e eu preciso trabalhar.
Até à próxima, então. Aproveite a folga para se olhar no espelho à maneira de Lacan, e imagine como você seria se houvesse um espaço sem ligação entre seu tronco e seus braços, entre seu tronco e suas pernas, entre seu pescoço e sua cabeça. Angustie-se até não poder mais com essa visão, não economize sentimentos. Se puder, cole pedaços de papel negro no espelho, para possibilitar essa visão. Sinta ao máximo a sensação de ser esfacelado.
Para compreender alguém, temos que nos colocar no seu lugar, viver o que ele vive, sentir o que ele sente, andar como ele anda, chorar como ele chora. Em todas as oficinas que promovo, gasto a primeira hora para transformar todos os participantes em autistas por um dia. Só falando chinês você compreende o que os chineses dizem. Se você quiser ajudar, tem que aprender autistês.
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